Março sempre tem o seu carácter de pressa, e a sensaçom é de que foi fugaz. Mas, a capitular este tempo acelerado e lhe tirar os fitos, aparece como um mês inusualmente cheio. É a transformaçom da primavera o que lhe outorga a sua fugacidade, os dias a medrar e a mudança da hora, o tempo incerto. Mas se extraímos a vida de todas essas correntes espetaculares, fica um molho de dias bem completo, que daria para querer se lhe puidéssemos dar mais vagar.
A incomodidade do mês aparece dessa aceleraçom que turra polos dias a ritmos pouco humanos. Mas é sobretudo o final do inverno o que nos pom fóra de lugar. Supom essa radical mudança de cenário ante a que nos situamos a maior fonte de desconcerto e até do fastio por ter que mudar quando ainda nom aninháramos num inverno que cada vez amo mais. Na primavera desaparece a sensaçom do extraordinário que ainda acompanha os encontros do inverno. Esses meses contidos mantenhem em sim a possibilidade do relampo, invistem com a categoría do excecional acontecimentos que noutros meses se dam por supostos, como se fosse singelo combinar tempos e espaços e a vida fosse surgir por qualquer recanto sem esforço. Falta na primavera o trabalho, a intençom, a necessidade de atender ao mais pequeno para artelhar, e, na recompensa, saber que fomos nós quem armámos esses momentos.
(Deste jeito exerce Trapobana, a obrigar-me a pôr o foco cada mês nos subtis cámbios que desacougam os sentidos, a construir um conhecimento fragmentário mas contínuo sobre os pesos e ligeirezas que acompanham a vida de maneira inconsciente, a identificar os recantos que aledam a alma -ou algo calado que compre alimentar dentro- e aqueles que achegam um agocho mais grave e que aprendemos a amar. Ao tempo, a aprendizagem é contá-lo, adjetivar e descobrir como se situam as palavras no seu lugar, o jeito no que voam essas levidades, as pequenas variações que ecoam no sentimento segundo se vam desenvolvendo).
A vertigem do mês vencelhou-se também à impressom de que a casa só puidesse ser de inverno, tal e como a conhecémos, e nom quigesse perder essa sensaçom. Continuou o lugar neste tempo como foco da vida, mas cum maior assentamento, abrírom-se mais as portas e amosou o potencial para receber, estar de novos jeitos, calibrar distáncias que nom som tantas. A apariçom na porta de I. e O. de caminho para a sua futura casa a cinco quilómetros da nossa, a nos saudar enquanto tomávamos o café em bata de manhá, foi o anúncio mais claro desses novos jeitos em que se vai viver Sebe.
O silêncio da casa adquire um jeito de domingo. Os espaços baleiros das escaleiras, com a luz peneriada polas mosquiteiras das janelas, dam-lhe um aspeto sacro. E quiçais é contra isso que aparece essa necessidade de encher, e falar, de acompanhar. Ou será apenas o temor a um possível ilhamento no rural. Ou simplesmente a gana acumulada de receber, de sermos nós quem acolha e nom apenas quem visita. Colhe substáncia o exterior. As árvores que redefinem os seus perfís em flores e folhas, o horto que há que cuidar, as possibilidades de trabalhar onda os carvalhos. A banda de pimpins, o tordo e os ferreirinhos confirmam-se como residentes. Aparecem ainda novas queixas do conjunto ante a mudança, avarias misteriosas que na altura já aceitamos como parte da adaptaçom deste nosso novo fogar. Dentro da minha carreira de normalizar o carro (com os primeiros empregos para ócio), raio-o na porta do garagem, no mesmo lugar onde já estava tocado, e nom é tragédia.
Falta ainda sair mais. Apreender a amar as estradas sem passeios, as leiras que nom som jardins nem carreiros habilitados, este espaço rural que nom resulta escénico com os seus ecos de Inglaterra e de inverno sempre. Um mundo feito da semelhança com a casa dos tios em Mourente, de chalés e infraestruturas sem renovar, onde o caos agroma no miúdo. Ao bordo da noite ainda exploro essa contorna com a sogra, a visitar sem sabermos o castro por vez primeira e a atopar vias inéditas.
(Umha manha de quase sol verifica que estamos em tempos que auguram primavera, que aginha tudo vai acelerar muito mais. A luminosidade destes dias frios convida a olhar caras e alternar com a inspeçom dos restos que aparecem no chao, as sincronias de rever no passeio envoltórios de caramelos e medicamentos que estivérom na nossa vida, objetos familiares pequenos que algum remoinho de tempo deitou de novo ao nosso passo. A suma de sensações anuncia histórias familiares mas novas, contos de ilusões, de velhice na forma de conformidade ou de ter aprendido a levar a vida, projeções enfim de sentimentos que esta friagem concreta nos remexe).
Falto como estava de habitar a fim do inverno, caminhar na chúvia achegou-me a primeira experiência da época, a recuperar um meu carácter nómade (de tardes pendente de ir de um lugar a outro, de autocarros e aguardas) com a visita de Ana desde Ponte Vedra e o reencontro com as suas amizades (também deu para partidas). O serám amosa como o país da chúvia amplia as distáncias, fai mais complicados os movimentos e tira algo de gana de estar em qualquer lugar fóra da casa.
Vinhérom os meus pais (e comprovámos como os de Casal bombardeiam Sebe desde a linde com os foguetes pola festa) e os sogros, a evidenciar e acelerar todo o trabalho pendente na casa, abrir frontes com a horta e liquidar questões pendentes. Recebemos o Sinho, estreei o Betos e explorei as amizades próximas num primeiro encontro com o Íñigo e a visita fugaz à de Migue e Maria. Artelhámos com Luzia no ar, baixamos ao Porto ver Jethro Tull com os vigueses, umha aventura que quase fica esquecida no turbilhom do mês, fomos ao Peteiros e acolhémos a família Zapata num chá, a explorar em cada volta novos jeitos estar. Polo meio o Merlim como umha companhia contínua, a falta do Jocas, os mínimos encontros com o Carlos, a Alejandra, o David e os Quintela, mil visitas médicas e certa sensaçom de nom dar feito. Por Lugo, um passeio até Páramo concentrou esse esplendor do último inverno, figémos visitas familiares novas, houvo jogos com o Breixo, cozidos, minhatos inéditos. Trougem a minha coleçom de rol para a casa, e quando olho o andel na casa dos pais, esse oco faime menos de ali, nom sei se mais doutro lugar. Até demos botado umha memorável partida de bruxas com o Xico, a explorar a improvissaçom de personagens e situações
Com as suas marés, março foi um mês de cantar. Armámos umha festa demorada, estreámos o karaoke e toquei cá o ukelele por vez primeira em companhia. E ainda demos artelhado umha jam ao jeito das antigas com o Rapo e o Sérgio, quero pensar que umha primeira das que virám. Essas experiências lembram o singelo que ainda resulta cantar a coro e como há gente arredor com gana de o fazer. (Carbon y ramas secas volta soar, com esse “nadie te amará tanto como yo”. A cançom ecoa com o calor de tempos afiados com o coração enchido a sair pola gorja. Cantava-se daquela certeza, e nom foi abondo, e menos mal. E vem-me à cabeça que o mesmo só com a intensidade aqueles meses de amores e desamores já daria para dizer que tenho vivido. E que a vida véu sendo muito mais, nom umha ressaca nem umha queda mol. A vida, de facto, é tudo o demais).
Uns dias de mau humor quadrárom com um primeiro aviso da artrite em meses. Nom estou curado de nengum dos dous males. Achaquei esse estado anímico a umha conjunçom da carga mental pols cousas da casa, a miúdo processos mais complicados do que poderia semelhar, com certa alteração por stress anticipativo, cafeína e falta de sono. Com o passo das semanas, repassos médicos intensos deitam certa libertaçom de problemas de saúde. As ajudas de Barriga Verde mantivérom-se com menos peso do previsto, e um abandono consciente nos últimos dias. Altri apareceu como um peso que, além do efeito que a própria fábrica pode ter sobre o conjunto do país, do enésimo latrocínio que supom, ameaça com se fazer mais umha nuvem com a que ter que viver. A campanha promete anos de trabalho intenso, engade novas incertezas sobre o futuro e a necessidade dum enésimo esforço por gerir a vida.
(Sonho com um jardim no que atopo o meu lugar. Deixo por um momento a atençom a amizades várias, percorro a beira do regato, cheio de vegetaçom e dee flores, e pouso onda umha pontelha de madeira. Lá identifico que esse meu lugar é o ponto no que sentava na cama dos pais de pequeno. O recuncho que me correspondia no final da escala de poder -algum irmao a ocupar a butaca-, onde podia olhar a TV, cear e ler ao tempo com umha BD sobre as pernas).
A apertura intermitente dos céus ao longo do mês destila como a chúvia a certeza de ter passado o inverno sem o gozar. A sensaçom de que estes meses nom fórom abondos, que nos faltou mais percurso polo interior do país, que ficárom buracos que encher de lique, que nom chegamos a esta altura preparados para umha primavera que se antolha temperá de mais, por muito frio que vaia. Nom queria soltar aquele tempo, precisava ainda indagar nesses crescimentos demorados, nos signos quedos de vida, antes que março acelerasse tudo e nos deixasse atordoados nas infindas possibilidades que abre. Deixo o inverno como se ainda figesse falha umha certa dose de buracos baixo as pedras e de folhas secas nas que ter assentado para passar à seguinte etapa. E, no entanto, está aqui a primavera e, sem estarmos preparados, jordem alegrias simples e espontâneas que nom se aguardavam. A estaçom desabrocha e caminhamos por ela como por um mundo novo no que a gravidade tivesse mudado. As folhas ocupam o seu lugar como se sempre tivessesem estado lá, a saudar o mês.
A última semana desenvolveu-se em queda livre, com o assombro constante de se atopar já em abril a achegar vertigem. Fugimos a Bilbo a atopar expossições, concertos, comidas ao acaso, com umha jornada de museus a me encher das sensações subtís que achega a arte contemporánea e aprendizagem essa subtilidade da arte contemporánea. Já no começo de abril, a segunda de Páscua amanheceu com o sol exato que lhe corresponde.
Nesta altura é que me decato de que o mês foi enorme. Fai falha olhar para atrás para se assombrar com tudo o que abrangueu, com quantas cousas transformárom os dias em experiências únicas. E como nom fum quem de olhar essa intensidade, atrapado nas mudanças fugazes que achegárom essa contínua sensaçom de estar a perder algo importante. Março semelha agora mais um cobertor aliado que achegou a energia precisa para fazer da vida algo semelhante ao que quereriamos. Estivérom aí todos os dias cheios, e ainda bem que hoje o dou comprovado e podo lhe agradecer o agarimo.