A incomodidade de Março

Março sempre tem o seu carácter de pressa, e a sensaçom é de que foi fugaz. Mas, a capitular este tempo acelerado e lhe tirar os fitos, aparece como um mês inusualmente cheio. É a transformaçom da primavera o que lhe outorga a sua fugacidade, os dias a medrar e a mudança da hora, o tempo incerto. Mas se extraímos a vida de todas essas correntes espetaculares, fica um molho de dias bem completo, que daria para querer se lhe puidéssemos dar mais vagar.

A incomodidade do mês aparece dessa aceleraçom que turra polos dias a ritmos pouco humanos. Mas é sobretudo o final do inverno o que nos pom fóra de lugar. Supom essa radical mudança de cenário ante a que nos situamos a maior fonte de desconcerto e até do fastio por ter que mudar quando ainda nom aninháramos num inverno que cada vez amo mais. Na primavera desaparece a sensaçom do extraordinário que ainda acompanha os encontros do inverno. Esses meses contidos mantenhem em sim a possibilidade do relampo, invistem com a categoría do excecional acontecimentos que noutros meses se dam por supostos, como se fosse singelo combinar tempos e espaços e a vida fosse surgir por qualquer recanto sem esforço. Falta na primavera o trabalho, a intençom, a necessidade de atender ao mais pequeno para artelhar, e, na recompensa, saber que fomos nós quem armámos esses momentos.

(Deste jeito exerce Trapobana, a obrigar-me a pôr o foco cada mês nos subtis cámbios que desacougam os sentidos, a construir um conhecimento fragmentário mas contínuo sobre os pesos e ligeirezas que acompanham a vida de maneira inconsciente, a identificar os recantos que aledam a alma -ou algo calado que compre alimentar dentro- e aqueles que achegam um agocho mais grave e que aprendemos a amar. Ao tempo, a aprendizagem é contá-lo, adjetivar e descobrir como se situam as palavras no seu lugar, o jeito no que voam essas levidades, as pequenas variações que ecoam no sentimento segundo se vam desenvolvendo).

A vertigem do mês vencelhou-se também à impressom de que a casa só puidesse ser de inverno, tal e como a conhecémos, e nom quigesse perder essa sensaçom. Continuou o lugar neste tempo como foco da vida, mas cum maior assentamento, abrírom-se mais as portas e amosou o potencial para receber, estar de novos jeitos, calibrar distáncias que nom som tantas. A apariçom na porta de I. e O. de caminho para a sua futura casa a cinco quilómetros da nossa, a nos saudar enquanto tomávamos o café em bata de manhá, foi o anúncio mais claro desses novos jeitos em que se vai viver Sebe.

O silêncio da casa adquire um jeito de domingo. Os espaços baleiros das escaleiras, com a luz peneriada polas mosquiteiras das janelas, dam-lhe um aspeto sacro. E quiçais é contra isso que aparece essa necessidade de encher, e falar, de acompanhar. Ou será apenas o temor a um possível ilhamento no rural. Ou simplesmente a gana acumulada de receber, de sermos nós quem acolha e nom apenas quem visita. Colhe substáncia o exterior. As árvores que redefinem os seus perfís em flores e folhas, o horto que há que cuidar, as possibilidades de trabalhar onda os carvalhos. A banda de pimpins, o tordo e os ferreirinhos confirmam-se como residentes. Aparecem ainda novas queixas do conjunto ante a mudança, avarias misteriosas que na altura já aceitamos como parte da adaptaçom deste nosso novo fogar. Dentro da minha carreira de normalizar o carro (com os primeiros empregos para ócio), raio-o na porta do garagem, no mesmo lugar onde já estava tocado, e nom é tragédia.

Falta ainda sair mais. Apreender a amar as estradas sem passeios, as leiras que nom som jardins nem carreiros habilitados, este espaço rural que nom resulta escénico com os seus ecos de Inglaterra e de inverno sempre. Um mundo feito da semelhança com a casa dos tios em Mourente, de chalés e infraestruturas sem renovar, onde o caos agroma no miúdo. Ao bordo da noite ainda exploro essa contorna com a sogra, a visitar sem sabermos o castro por vez primeira e a atopar vias inéditas.

(Umha manha de quase sol verifica que estamos em tempos que auguram primavera, que aginha tudo vai acelerar muito mais. A luminosidade destes dias frios convida a olhar caras e alternar com a inspeçom dos restos que aparecem no chao, as sincronias de rever no passeio envoltórios de caramelos e medicamentos que estivérom na nossa vida, objetos familiares pequenos que algum remoinho de tempo deitou de novo ao nosso passo. A suma de sensações anuncia histórias familiares mas novas, contos de ilusões, de velhice na forma de conformidade ou de ter aprendido a levar a vida, projeções enfim de sentimentos que esta friagem concreta nos remexe).

Falto como estava de habitar a fim do inverno, caminhar na chúvia achegou-me a primeira experiência da época, a recuperar um meu carácter nómade (de tardes pendente de ir de um lugar a outro, de autocarros e aguardas) com a visita de Ana desde Ponte Vedra e o reencontro com as suas amizades (também deu para partidas). O serám amosa como o país da chúvia amplia as distáncias, fai mais complicados os movimentos e tira algo de gana de estar em qualquer lugar fóra da casa.

Vinhérom os meus pais (e comprovámos como os de Casal bombardeiam Sebe desde a linde com os foguetes pola festa) e os sogros, a evidenciar e acelerar todo o trabalho pendente na casa, abrir frontes com a horta e liquidar questões pendentes. Recebemos o Sinho, estreei o Betos e explorei as amizades próximas num primeiro encontro com o Íñigo e a visita fugaz à de Migue e Maria. Artelhámos com Luzia no ar, baixamos ao Porto ver Jethro Tull com os vigueses, umha aventura que quase fica esquecida no turbilhom do mês, fomos ao Peteiros e acolhémos a família Zapata num chá, a explorar em cada volta novos jeitos estar. Polo meio o Merlim como umha companhia contínua, a falta do Jocas, os mínimos encontros com o Carlos, a Alejandra, o David e os Quintela, mil visitas médicas e certa sensaçom de nom dar feito. Por Lugo, um passeio até Páramo concentrou esse esplendor do último inverno, figémos visitas familiares novas, houvo jogos com o Breixo, cozidos, minhatos inéditos. Trougem a minha coleçom de rol para a casa, e quando olho o andel na casa dos pais, esse oco faime menos de ali, nom sei se mais doutro lugar. Até demos botado umha memorável partida de bruxas com o Xico, a explorar a improvissaçom de personagens e situações

Com as suas marés, março foi um mês de cantar. Armámos umha festa demorada, estreámos o karaoke e toquei cá o ukelele por vez primeira em companhia. E ainda demos artelhado umha jam ao jeito das antigas com o Rapo e o Sérgio, quero pensar que umha primeira das que virám. Essas experiências lembram o singelo que ainda resulta cantar a coro e como há gente arredor com gana de o fazer. (Carbon y ramas secas volta soar, com esse “nadie te amará tanto como yo”. A cançom ecoa com o calor de tempos afiados com o coração enchido a sair pola gorja. Cantava-se daquela certeza, e nom foi abondo, e menos mal. E vem-me à cabeça que o mesmo só com a intensidade aqueles meses de amores e desamores já daria para dizer que tenho vivido. E que a vida véu sendo muito mais, nom umha ressaca nem umha queda mol. A vida, de facto, é tudo o demais).

Uns dias de mau humor quadrárom com um primeiro aviso da artrite em meses. Nom estou curado de nengum dos dous males. Achaquei esse estado anímico a umha conjunçom da carga mental pols cousas da casa, a miúdo processos mais complicados do que poderia semelhar, com certa alteração por stress anticipativo, cafeína e falta de sono. Com o passo das semanas, repassos médicos intensos deitam certa libertaçom de problemas de saúde. As ajudas de Barriga Verde mantivérom-se com menos peso do previsto, e um abandono consciente nos últimos dias. Altri apareceu como um peso que, além do efeito que a própria fábrica pode ter sobre o conjunto do país, do enésimo latrocínio que supom, ameaça com se fazer mais umha nuvem com a que ter que viver. A campanha promete anos de trabalho intenso, engade novas incertezas sobre o futuro e a necessidade dum enésimo esforço por gerir a vida.

(Sonho com um jardim no que atopo o meu lugar. Deixo por um momento a atençom a amizades várias, percorro a beira do regato, cheio de vegetaçom e dee flores, e pouso onda umha pontelha de madeira. Lá identifico que esse meu lugar é o ponto no que sentava na cama dos pais de pequeno. O recuncho que me correspondia no final da escala de poder -algum irmao a ocupar a butaca-, onde podia olhar a TV, cear e ler ao tempo com umha BD sobre as pernas).

A apertura intermitente dos céus ao longo do mês destila como a chúvia a certeza de ter passado o inverno sem o gozar. A sensaçom de que estes meses nom fórom abondos, que nos faltou mais percurso polo interior do país, que ficárom buracos que encher de lique, que nom chegamos a esta altura preparados para umha primavera que se antolha temperá de mais, por muito frio que vaia. Nom queria soltar aquele tempo, precisava ainda indagar nesses crescimentos demorados, nos signos quedos de vida, antes que março acelerasse tudo e nos deixasse atordoados nas infindas possibilidades que abre. Deixo o inverno como se ainda figesse falha umha certa dose de buracos baixo as pedras e de folhas secas nas que ter assentado para passar à seguinte etapa. E, no entanto, está aqui a primavera e, sem estarmos preparados, jordem alegrias simples e espontâneas que nom se aguardavam. A estaçom desabrocha e caminhamos por ela como por um mundo novo no que a gravidade tivesse mudado. As folhas ocupam o seu lugar como se sempre tivessesem estado lá, a saudar o mês.

A última semana desenvolveu-se em queda livre, com o assombro constante de se atopar já em abril a achegar vertigem. Fugimos a Bilbo a atopar expossições, concertos, comidas ao acaso, com umha jornada de museus a me encher das sensações subtís que achega a arte contemporánea e aprendizagem essa subtilidade da arte contemporánea. Já no começo de abril, a segunda de Páscua amanheceu com o sol exato que lhe corresponde.

Nesta altura é que me decato de que o mês foi enorme. Fai falha olhar para atrás para se assombrar com tudo o que abrangueu, com quantas cousas transformárom os dias em experiências únicas. E como nom fum quem de olhar essa intensidade, atrapado nas mudanças fugazes que achegárom essa contínua sensaçom de estar a perder algo importante. Março semelha agora mais um cobertor aliado que achegou a energia precisa para fazer da vida algo semelhante ao que quereriamos. Estivérom aí todos os dias cheios, e ainda bem que hoje o dou comprovado e podo lhe agradecer o agarimo.

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Fevereiro revelado

Fevereiro desenvolveu-se costa abaixo, preso da inércia que gera o desenvolvemento acelerado de folhas e flores. O mês trouxo a constataçom de que isto chamado inverno é tudo um período de crescimento, contido e pontual num começo, mas que aginha desabafa. Nom dá para sentir perda nengumha, tudo se situa num olhar de esperança. Resulta difícil assentar na estaçom num mês que se percebe como alborada constante, com as mudanças a precipitar e nos deixar no borde da expectativa, continuamente assomados ao futuro. Diria-se que o tempo quixo ter um fondo de calma, e que nós ficámos de mais na superfície.

A casa cobrou portagens na forma de vidros rotos. Copos, ensaladeiras históricas, a garrafa que levava anos com nós, quebrárom ao jeito de brindes polos tempos novos. Aliá, as possibilidades fórom assentando-se em movimentos concretos, percorridos por lugares que passam aos poucos a ter funções familiares. Assentamos movimentos e posições, maneiras de habitar. Decidimos o jeito melhor no que pranar as cousas no fregadeiro, o lugar para as toalhas, a organizaçom de armários, o banho preferente para tomar duche segundo as horas, as maneiras nas que melhor aproveitar a varanda, os espaços de armazenamento. Ao eliminarmos determinadas possibilidades, a imaginaçom tem em quê se aferrar e concretizam-se também perspetivas mais fundas sobre como atuar com certos espaços. Com o olhar começamos também a conformar as paisagens pequenas que nos arrodeam, lugares nos que havemos fixar a vista como a ler um alfabeto próprio, a checar as mudanças do universo. Os solpores por cima do muro e o briom que medra. Os diferentes tipos de erva e plantas que medram em agrupações orgánicas. Os recantos nos que a finca se transforma em mínimo bosque, em valgada, em agocho.

As manhãs na casa tenhem ainda algo de acordar e querer explorar, a ilusom de amanhar, de lhe atopar um acocho às cousas que andam ciscadas, de lhe dar uso a novos recantos. Aparece a maravilha de observar os passaros desde a cozinha ou da porta da garagem. Os múltiplos ferreirinhos, os paporrubios reais, a papuxa, o tordo que bota as tardes a cantar. A família de pimpins.

Segundo passam os dias aparece certa sensaçom de que nalgum momento havemos sair fóra. Nom como agora uns minutos, umha hora ou duas a trabalhar o jardim ou fazer tarefas com o computador onda os carvalhos. Aos poucos imos incorporando esse espaço, mas fica como um fundo a sua possibilidade pendente, certa impaciência porque chegue um momento no que estejamos no exterior mais do que dentro na casa, por conquistarmos realmente a erva e as árvores que ainda se comportam mais como cenário. As pequenas tarefas de fóra, ainda por incorporar, insinuam essa possibilidade de transformaçom que tem o terreio. As decorações, hábitats, espaços para se deitar, buscas de tesouros, luzes que se podem deitar lá.

A nos assentar como proprietários, aparece-me a questom da casa como legado. Cada incorporaçom de objectos obriga a considerar para quem estamos a artelhar isto, quem se vai ter que se fazer cargo deste volume de acumulações. Cómpre pensarmo-nos como gestores e objectos finais desses investimentos. Ao tempo, aparece o ponderar a cada pouco para quê precisamos cada cousa. Som necessários os livros? Os quadros? Até que ponto suponhem luxos, e nesse caso, quais luxos nos queremos permitir? Sei lá se em relaçom com isto, aparece a possibilidade de, de socato, fazer-me consciente de que está aí, na esquina, um universo de perda desconhecido que pode bater em mim como um comboio. Ou de que a despedida das cousas todas que estamos a construír resulte inasumível, como quando criança. Sem chegar a medo, percebe-se como um potencial futuro, como umha ficçom, como um eco na imaginaçom dum eu que fum e que deixou pegada.

(A escrever sobre as abelhas, decato-me de como Domingo era também o mel. Desaparecem cousas de mais quando morre umha pessoa. Custa sentir a dádiva que supom a acumulaçom que nos trouxo cá fronte à perda maciça e um silêncio de palavras que poida que nom escuitemos nunca mais).

Tento olhar que somos nós os que pomos nos velhos o papel de guardiões. Eles apenas vivírom a sua vida como puidérom e abandonárom e apanhárom o que fosse. Somos nós quem os carregamos com esse significado de custódios, porque desse jeito podemos amá-los através das cousas que pensámos que eram eles e que nos legárom. Tiramos-lhes substáncia individual e transformámo-los em elos dumha cadeia imaginária, composta por elementos que nós escolhemos (o meio, a horta, a língua, as cantigas, os topónimos, os bailes, as leiras, os jeitos de trabalho) e que, se continuamos dalgumha maneira, redime os conflitos que mantemos com eles. Resulta difícil acaeitar essa conceiçom quando arredor se dá esta creba geral, esta obrigaçom a nos possicionar ante o naufrágio que dota a nossa vida dumha sensaçom de tragédia na que devemos nos desenvolver e escolher. Nom há normalidade neste país. Partilhamos a fenda e adaptamo-nos como podemos.

Nessas, saímos das eleições sem a sensaçom de derrota doutras voltas. Nom polo resultado do nacionalismo, mas diria-se que por umha aceitaçom da situaçom geral, mesmo a saber toda a merda que supom. E penso, a um nível mais racional do que emocional, na violência em que moramos, obrigados a viver e aturar cousas que nom queremos, que sabemos injustas. A alerta de baixa intensidade na que nos movemos a diário, o malestar e o anojo que agromam de jeito inevitável nalgum momento do dia, por mor de viver baixo o domínio da máfia.

(Ao escuitar o Drexler (Asilo) lembro as noites passadas a procurar um abraço ou a afogar a gana. Anos aqueles nos que, faltos de nos compreender, roldávamos abismos que nem conheciamos. A urgência do medo acompanhava a vida como umha sombra à que lhe dávamos o controlo nas sextas à noite. Como no Natal, cumpria nos fazer companhia para sobreviver. Perdeu gume a vida desde entom, acomodamos certas moléstias e eliminamos muitas outras. Nom se pode achar de menos aquele passado, por muito de expectaçom que tivesse, e aberto como estava ao imprevisto. Moramos agora no lugar nosso, quiçais algo mais temerosos de cousas que conhecemos e que venhem com a idade, mas livres já do peso dos caos icomprensíveis que nos atenazavam).

Neste tempo, a vida social transcorre quase natural, e é no reconto que se comprova intensa. Houvo que planificar um bocado mais, mas deu para encontros apanhados em Compostela. Tino, Jocas, Alejandra. Anna e Luzia a mergulhar em conversas nas que nom é possível saír indemne. Visita do Salva num primeiro passeio de descoberta de lavadoiros e depósitos de briom. Acolher o Mer e a Clau, a aprendermos ainda maneiras novas de ter convidados. Visitas dos pais, redescobrer as manhas do velho, tam difíceis de compreender às vezes. Um mitin e umha ceia envoltos em esperanças truncadas e a Hellen Keller de Chévere amosam as tentativas de ver como podemos viver a cidade desde essa certa distáncia.

Barriga Verde contraiu muitos dos dias. O desfrute do jardim deu-se a base de tirar o computador fóra para trabalhar. Umha juntança em sábado deu-me para a minha primeira viagem em solitário à cidade com o carro. O processo gerou um final de vertigem no limite da hora de entrega, a comprovar que nom levo bem esses momentos de apuro. A experiência deixou certa ressaca, a necessidade de se ressituar fronte a esses movimentos.

As reparações aparecérom em jeitos inéditos. Recuperei a apertura da janela do telhado, o flexo, a porta dum móvel, purgámos a caldeira, testei o karaoke, mudei bocas de mangueira, troquei tomadas, armei um suporte com um palé. Atrevim-me com os freios da bicicleta e fracassei totalmente. Recolocámos móveis a sair de certa sensaçom de precariedade, botámos horas imensas por Leroy Merlin e Obramat até a extenuaçom. Experimentamos com os robôs para cozinhar e aspirar, equipamo-nos para horta e vida. Cortamos a relva.

(No trajeto cara a Compostela nas manhás, descobrimos um centro de diálise no baixo dum edifício anódino. A primeira hora, na escuridade exterior, através das janelas observa-se esse estranho espaço, cheio de camas com gotejadores e aparelhos, enfermeiras e doentes. Revela essa luz fria umha realidade alternativa que se desenvolve em paralelo à nossa, a do lote de gente que tem incorporada na rotina essa visita periódica, a desse espaço altamente profissionalizado, como um dos antigos pavilhões hospitalares, no que umha multitude partilha esse momento íntimo de estar deitado e a sanar. Segundo vam medrando os dias, desaparece esse lugar. A luz exterior opaca as cortinas, oculta de novo essoutra realidade, como se só em determinados momentos e conjunções estivesse a sobrepôr-se com a nossa. Ninguém que passe vai saber se continua ou se ficou baleiro o lugar até as vindeira temporada de noites longas).

Num momento de insónia logo da derrota eleitoral, a meia consciência, dalgum lugar emerge umha sentença que se repete como um mantra: “Todos somos salvaçom”. Sei lá até que níveis de consciência chega a ideia, que implicações tem. Mas nom tarda muitos dias em se vencelhar à ideia das veladas temáticas na casa. Afundo nos múltiplos significados do nome que pensamos para os encontros: Sede Sebe (Sedbe). E penso como se pode entender ao jeito dumha exortaçom a criar umha muralha de vida, um espaço orgánico para resistirmos a pequena escala e criar um bocado de luz em conjunto. Sermos salvaçom. O projeto achega-me umha ilusom que nom sei medir, ignoro qual será a força desse entusiasmo e como baterá com o calendário. Mas vai-se tentar. Imos juntar-nos para falar e fazer cousas, e sairám melhor ou pior, mas há se fazer algo de semente.

A certa altura aparece o sol despregar umhas artes que já som de primavera. Achega nelas a surpresa que dam as cousas que aparecem quando nem as aguardávamos nem chegáramos a as achar de menos. Desvela com essa luz umha ignoráncia de nós mesmos, um nom saber o que nos pode afetar no que moram imensas possibilidades de assombro e de transformação. Nesse desconhecimento é que se desenvolvem os sábados de manhã a fazer coisas inéditas, as alegrias sem planejar, as permeabilidades incógnitas nas que o mundo nos toca dentro e nos transforma. Há ser cousa de as cultivar.

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A casa de janeiro

A luz de janeiro quixo achegar lucidez desde o começo. As primeiras viagens desde Ponte Vedra à casa amosárom um país quedo, pousado solidamente na melhor parte do inverno, num punto de nom aguardar, recolhido a acompanhar o caminho. Achegárom essas primeiras jornadas a surpresa inevitável da chegada dos liques. A viagem com o Tino a trazer sofás foi momento de comprovar essa maravilha: O momento mais nu das árvores, quando nom fica já folha, é também aquele no que se verifica a explosom que enche a paisagem de tons fluorescentes.

No entanto, ficamos maiormente agochados da luz neste mês. As horas fórom para a casa, que achegou ritos de passo abondos para nós e para sim própria. A verificar a transformaçom na que nos atopamos, passou as suas febres. O sumidoiro atascou-se. A caldeira nom dava funcionado bem. À cheminé custava-lhe queimar. A instalaçom elétrica precisava retoques. A porta da garagem nom fechava de tudo. Chamadas de atençom nas que o espaço revelou a sua idade, uns achaques inadvertidos que por vezes aceitamos sem hesitar e outras custou mais integrar, mas que afinal fomos resolvendo.

A casa é nestes primeiros dias, semanas, um espaço a exlorar. Recunchos, cicatrizes, móveis e ocos aos que ainda nom se lhe adivinham as possibilidades reais. Boa parte dos tesouros dessa exploraçom som as cousas que lembramos que desaparecérom nas nossas caixas. Outra parte está conformada polas que aparecem nos agochos da casa. Novas ferramentas de jardim, paineis para o chao, táboas, repostos… a metade do mês desenvolve-se entre a procura e a descoberta desses elementos incógnitos.

Esses objectos que ficárom na casa falam dum passado que, sem ser meu, aceito como próprio. Os pratos de agasalho de Argal e Larsa, os copos disparelhos de formas e cores conhecidas, os aparelhos eletrónicos avariados de há vinte anos, a decoração rústica e aleatória cos seus recordos de Oseira, Jerusalem ou Múrcia; as artesanias duvidosas, os quadros aos que nom sabemos quê consideraçom dar, o kipple que aseja nas gavetas. Tudo lhe outorga ao lugar umha familiaridade tremenda, como se a casa mos propusesse para acordar a minha compreensom de sim mesma e do aqui vivido.

Dalgum jeito todos esses objectos levam-me aos anos 70. A sensaçom é a dos tempos de infância a descobrir as cousas que me antecederam. Daquela a dificuldade era compreender como se chegaram a estragar, qual era a distância que percorreram até as minhas maos os relógios estragados, o moedeiro do avô morto, os joguetes dos irmaos maiores, as vaixelas chegadas do além que era a aldeia.

Nom é o eu que aguardava quem investiga agora isso tudo. É um eu que se dedica a furar, arrumar, trabalhar para paliaras cousas que nom andam bem. A casa muda-me por jeitos que nom contava. Sinto os dedos muscular-se, o cansaço físico no final do dia, que só de quando em quando se acompanha de pequenos desesperos polos flancos que tenhem má soluçom.

Pergunto-me como me estám a mudar estes meses de eficiência e de contínuas tarefas. De quantas mais necessidades me despojam. Fiquei neste tempo feito alguém mais prático, centrado em questões de urgência: O calor, o alimento, os espaços, o sono. Além disso, tudo som detalhes que aparecem como as cousas perdidas nas caixas, ao jeito de surpresas que reclamam umha mínima atençom e me achegam pequenas doses de estupor, de que o mundo continua além da casa.

Outras explorações aparecérom nestes dias. As visitas a bazares, supermercados e lojas de ferragens configurárom-se como a indagaçom de covas cheias de tesouros que conformam um tempo próprio. Nom-lugares que, na amabilidade fria da sua semelhança, geram umha saturaçom dos sentidos com a abundáncia de elementos incógnitos que poderiamos incorporar à nossa vida. Entrar neles é situar-se nesse universo no que sempre é a mesma hora baixo as lámpadas frias, um mesmo labirinto de prateleiras que convida a procurar o preciso, a soluçom a males que nem sabiamos, por trás de cada recanto.

Num dia de sol tiro as mosquiteiras, agarro o ukelele, enfio canções alegres como se fosse feliz e fago-me feliz. Deito-me em camisola ao sol de janeiro e semelha possivel fazer tal. O calor dos momentos sentado ao sul resulta incrível e achega umha promesa de tempos fora. Janeiro volta-se irreal nessas parénteses: passamos a morar num tempo próprio imposto pola casa, que nom corresponde com o inverno em absoluto e do que nom sabemos onde nos levará.

As experiências de gozar da casa por primeiras vezes transcorrérom entom relativamente ilhadas do momento do ano. Um par de passeios revelárom a magnitude dos céus abertos da zona, a geografia de campos limpos e levemente inclinados que semelham ainda nom encuadrados nas lógicas do urbano. As breves visitas à cidade achegárom manhás desconhecidas, com as camélias a distrair a visom, a eufória do consumo, a sensaçom de fogar no autocarro de volta.

Mentres, janeiro desenvolveu-se por fóra dos muros. Nós olhámo-lo brevemente apenas nas àrvores da finca, na água que corre, nas flores que abrocham, na geada. E o universo continuava o seu ritmo, deixando-nos ainda mais cativos na sua ignoráncia de nós. É certo que os céus abrírom e o ar acolheu novos matizes, mas isso ficou apenas como um pano de fundo para a atividade extenuante na que estivemos.

Mália à sua querência por nos centrar no presente, o mês, sempre grávido de promesas, nom puido evitar se projetar como um tempo carregado de potência. (Remexer a folha seca sempre leva a atopar os gromos que, dalgum jeito, conseguem medrar lá). E assim, o período correu como se fosse um espaço amplo e cheio de opções polas que avançar e o nosso caminho atual fosse a casa. Deixou este tempo brevemente a sua sensação de eco de voz no ar frio em todas as suas jornadas, a celebrar de jeito lene o lento acordar do sol.

A casa de janeiro veu cumha luz plácida e leve que se desempenhou com o seu ritmo exato e sem esforço a revelar um mundo possível na sua esperança. Umha luminosidade que ficava concentrada nos recantos, a se erguer desde as teclas do computador, a enfiar polas fendas ao abrir as janelas. Pequena mas direta, iluminou-nos do jeito único no que o fai esta época.

Luzia achegou-nos o necessário amuleto para esta etapa, umha lesma que fica enriba da cheminé. Os cunhados, Laura, Martim e Tino equipárom-nos. Salva abriu a porta novos jeitos de nos ver. Os Antelo, os meus pais, o Jocas, todas as visitas multiplicárom conselhos e reparações. A primeira acolhida grande, com a calidez feita de cheminé a arder viva e a chuva fora, baixo a luz do néon, cumpriu dalgum jeito um sono pequeno, a sensaçom de ficar a gosto dentro na companhia, com um algo de voltar a lugares na infáncia (suponho que à casa do Pablo em Campo lameiro, onde vislumbrei por vez primeira um certo paraíso na forma do lume e a amplitude do chao de terraço). Aos poucos, a casa semelha abrir-se com amabilidade, situa-nos noutra possiçom para estar. Começam a agromar na mente ideias incríveis. Encontros musicais. Partidas. Veladas multitudinárias. O rádio de acçom deste tempo, com menos despraçamentos, foi relativamente cativo em distáncias, mas enorme em afetos.

Nos momentos nos que mais difícil semelhava tudo, tirámos folgos para ir ao teatro. Mergulhámos em Iribarne, umhas horas, com a companhia da Anna, e fica a sensaçom de compreender muito melhor do que há apenas uns anos as cousas que olho.

(De Laça morre Manolo. Impossível nom lembrar que fai quase um ano que o vim naquele Entroido que tanto nos libertou. O seu silêncio emocionado daquela despedida, semelhava presagiar que era derradeira. A ideia da casa baleira (sempre as casas, mais singelas de achar de menos, de amar, de rejeitar) incrementa a noçom de perda, poida que alumeada pola consciência de que com a fim de certas pessoas em determinados lugares fica um silêncio atroz. Semelha que as suas mortes som partes dum falecimento mais grande, um derrubamento contínuo de tudo um jeito de vida que nom tem soluçom. E serám desse jeito todas as mortes, e apenas naquelas que acontecem em certa distância, nom demasiado próximas, o peso da pessoa nom ocupa toda a mágoa que fica um oco no que se pode perceber esse plano geral do que fazemos parte).

Nom há vagar ainda para achar de menos a casa que deixámos. E, no entanto, nom estám aí os horizontes imensos do velho piso. A olhada está voltada para dentro, para o pequeno, ainda a apreender a possiçom exata das cousas, os limites dos espaços polos que nos movemos. Um processo no que nom me faltam golpes na cabeça, rabunhaços nas maos. Apenas jorde essa ausência muito ao fundo e quase alheia quando se fai o esforço de a perceber.

O documental sobre Grant Morrison, numha velada solitária onda a cheminé, leva-me a pensar em etapas, em olhar a vida num plano mais aberto. À sua sombra penso em que cousas estám a começar. Podamos, recolhemos broça. Por vez primeira armo um circuíto com paus no jardim com o Breixo. Apanho o carro para ir aos recados. Passeio. Chegam as bicicletas. Aos poucos, as potencialidades do lugar assentam, ameaçam com se fazer novos costumes e nos transformar em vias inéditas. Fago provas a medir os esforços e todos os movimentos tenhem algo de pioneiros. Saír da casa a caminhar, apanhar a bicicleta, dormir a sesta, cozinhar com o robô. Cada pequena atividade tem o potencial de se fazer experimentaçom. (Podo escrever fora a sentir o vento. A sua trabada pequena de frio leva-me a Vila Garcia, ao Moreiro, a outros jardins nos que tenho sonhado). A nova visita dos velhos consolida um jeito diferente de estarmos, também novo.

As transformações tam intensas e os fitos figérom do mês um tempo enorme, com etapas e fitos bem diferenciados. Assim foi o tempo das festas do Natal, o das cousas que nom funcionam, aquele das reparações, os dias de trabalhar fora. E os momentos destacados ficárom marcados polo desentupido dos sumidoiros, as visitas do técnico da caldeira, a resoluçom do problema elétrico, o tiro da cheminé amanhado, as mil cousas pequenas que amanhou o pai. Aos poucos, a preocupaçom deixa passo ao desfrute e à construçom do futuro.

Janeiro remata e, sem nos decatar bem, já mudou totalmente a luz. Chegamos ao final com umha certa desorientaçom, solventadas as urgências iniciais e a nos abraiar ante possibilidades que nom chegamos a albiscar, ainda como a entrar num sonho conformado da própria vida.

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A aguarda num dezembro monumental

Dezembro transcorreu feito um monumento a sim mesmo. Medrou em certo jeito à sombra desse quadro -Carl Moll: As ruínas romanas em Schönbrunn (1891)-, que apareceu no momento exato para compreender um tempo que só albiscamos ao longe, perdidos numha paisagem que ficou coberta pola nevarada de tarefas e de vida posta no futuro.

(Mestura-se no quadro a alegria vingativa da natureza a recuperar o seu lugar, o agridoce sabor a resistência da construçom além de toda esperança, o consolo magro de ter transcendido e deixado ainda pegada de séculos no lugar. E nem tudo isso o explica. Há um abraçar das árvores, um abrigo de briom, umha combinaçom que fai acolhedor esse abandono. Espaços coma esse achegam-me ainda a paz ilusória de ser possível neles sentar e ficar a acompanhá-los, simplesmente. Fai-se mais singelo o se deixar ir ao seu carom, como com a esperança de que também a nós nos cobram as folhas.)

Mesmo vivido de canto, o mês nom deixou esquecer que tem o seu sol. Que é um tempo extraordinariamente complexo, a se reivindicar como final de outono quando já todos o damos feito inverno. Andam os dias cheios de recantos nos que agroma briom e se acumulam folhas. Resulta singelo de querer este período, com todos os seus tons e formas de nuvens e variados graus de friagem. Sempre é possível atopar um espaço de maravilha nestes dias, seja polos céus, a névoa ou os solpores. Tudo embrulhado dumha majestosidade sóbria, sem saídas de tom. As cousas que realmente achega dezembro nom precisam de adornos nem de espectáculo. Aparecem verdadeiras e espidas, moles e inevitáveis. A sua grandeza vém da força inexorável que as move, do facto de nom poderem ser doutro modo. A solidez com que dezembro nos rodeia contrasta com a levidade que lhe outorga aos dias a luz queda, os silêncios, o extraordinário que tenhem estas jornadas cheias de curvas e de feriados, de possibilidades e de encontros.

O mês desenvolveu-se inevitavelmente num jeito de aguarda activa. A vida reduziu-se a umha coleçom de processos obrigados, umha preparaçom contínua, a morar um par de semanas por diante, uns passos além do tempo no que se estava. O desajuste atopou paralelo nas provas com os novos lentes de contacto. Visões duplas e luzes borrosas, olhos cansos de olhar longe, marcárom as noites prolongadas. No meio de todas as obrigas, um só dia acumulou todo tipo de pequenas maravilhas próximas. O restaurante subterrâneo de Vilalba e a poça do Alhigal, onde me acabei por banhar, amanhárom pequenas contas pendentes com o país. O cemiterio gótico, as casas alumeadas de Natal, a desfrutar o extraordinário da paisagem de luzes, acabárom de artelhar umha jornada das que deixam suco na memória.

(Nalgum passeio apressado, decato-me de como as luzes do Natal trocam a fisonomia das ruas. Nom falo de evocações nem de figuras, mas do jeito em como ter essas luzes enriba, dos reflexos do solpor nos adornos, modificam a maneira na que caminhamos. Com certeza tenhem algo de calor e cumprem a funçom necessária, prover consolo ao medo primordial à escuridade que segue a latejar tam fundo de nós que nem somos conscientes).

O falecemento de Shane MacGowan ergue pequenas vagas de pó que apousenta silente e aos poucos, como no fundo dum lago. Acorda umha trilha sonora da infáncia e dos primeiros invernos em Compostela, com o CD do Jocas a soar e que me acompanha ao longo das jornadas. Penso na fascinaçom recorrente que sinto por essas figuras autodestrutivas, como se realmente tivesse sido para mim algumha vez essa umha opçom. Nom faltárom exemplos arredor quando era cativo, a escolha semelhava singela e até ajeitada. Atopo umha comprensom fonda, um vencelho com esses personagens nos que me destruo de jeito vicário, a procurar as pegadas de agarimo e de talento que brilham com mais força nessa degradaçom. Também aparece lá a ánsia de reconhecer neles a saudade primigénia, de comprender o que os levou lá. E certa inveja polos seus supostos cúmios, a intensidade vital à que nunca terei chegado, a curiosidade por umha vida de altibaixos agudos que já nom conhecerei.

A perspectiva da casa supom um ajuste inesperado na relaçom com a memória. Em sonhos paralelos, Belém e mais eu enfrontamo-nos ao jeito no que imos construír um fogar nom provisório, capaz de receber. Dalgum jeito, o novo espaço situa-nos numha nova possiçom nesse sentido, achega-nos a oportunidade de nos fazer portadores das memórias familiares, de reclamar esse legado e pôr fotos da gente ida, incorporar as lembranças comuns, deixar as casas nas que só se permitiam representações das nossas próprias evoluções vitais. Tenho sonhos de casas que som caminhos e espaços abertos, e que conetam essas lembranças com novos futuros.

Poida que arredor disso, fazer caixas desta volta nom resultou agônico e até achegou algo de orgulho polos livros que se guardam, os objectos que cuidámos e emprestamos e que também nos definem. O proceso desenvolve-se dum jeito orgánico, como se já tivéssemos grande parte da vida encaixotada, numha ordem que aguardasse já este novo traslado, pendente de se despregar na sua totalidade, comprimida até o de agora polo espaço e quiçais pola ausência de certas expectativas.

Nas visitar por Ponte Vedra a correr, fum de cervejas com o Luís -Coma o bom vinho tinto, é impossível tomar umha porter que nom venha do passado. Nom se pode ilhar o sabor dessa sensaçom densa, da cor escura. Esse sabor chega doutro tempo, dum outono com menos luz, de anos a preto e branco. Destila momentos e pessoas que de nengum jeito podem ser novas nem se projetar no futuro. Na porter celebramos a pervivência-. Jantamos com os Segarra e os Ambroa, saudámos a correr a Anna e a Carmela, -com a descoberta maravilhosa de M. e A. a reforçar o meu fascínio intelectual polas intrépidas raparigas que roldam os 12 anos, um destilado de vida e de curiosidade, umha perspectiva nítida da que sinto que temos muito para apreender-. Vemos o Sérgio, mantenhos conversas entrecortadas com o Mer, saudamos e vivemos em geral com a cabeça sempre meio noutro lugar. Em Lugo mergulhamo-nos na família estensa, deixamo-nos ir, aproveitamos o vagar desses encontros.

No meio de todas essas correntes que nom chegam a tempestade aparecem momentos espontáneos de alegria leve. As cousas acontecem, nom coma peças que encaixem, mas ao jeito dos movimentos que olhamos na natureza. Imperfeitas, impredicíveis no detalhe, com um contínuo ponto de decadência feliz sempre inserido, sucedem nos seus ritmos próprios, nem sempre quando nós desejamos.

Nessas circunstáncias, a Noiteboa aparece sem contarmos, os dias perdem boa parte dos seus significados, conquistados polas tarefas. Saco ocos para ver rapidamente a Luzia e nos abraçar em fim de ano, passo umha hora com Alejandra e Salva como algo comum. Dous ratos e um paporrubio acompanham-me no caminho final até a casa desde a estaçom. Fago por derradeira vez todo tipo de cousas na casa velha e por primeira vez na nova. Trabalhar, pôr lavadora, ralar tomate, fazer a compra. Pequenas pontuações que adornam os atos mais cativos e fam por lhes achegar transcendências opostas que afinal equilibram e pouco impactam.

(Como a se despedir, a casa velha oferta umha galeria de amanheceres e de nuvens, a despregar néboas inéditas e reconfigurar a paisagem, a nos lembrar que ainda tinha mais promesas para nós. Acharei de menos esta vista urbana, o bairro obreiro, as luzes na chúvia do inverno.)

A sensaçom de mudança de paisagem, ainda precária e por incorporar, vém acompanhada de novos problemas, de cousas que serám distintas sem podermos ainda calibrar quanto. A casa nova promete mais ar livre, possibilidades inéditas de configurar a contorna, um novo lugar nas cadeias das lembranças e distinta relaçom com elas, mais comodidades, acolhimentos. Desde um lugar remoto, chega-me a sensaçom de que no fundo a esperança responde ao velho sonho de ser um Tom Bombadil, ou quando menos contar com um agocho hobbit. Um lugar de meu que me acobilhe e no que pode acolher à minha vez. Um espaço de poder que amosa as suas primeiras luzes.

(O agarimo que lhe proporcionam estes solpores declinados à paisagem, a pôr de relevo nos vales o cobertor de fume ao que todas as cheminés contribuem para abrigar um mundo que nesses momentos se torna um bocado mais irreal. Há umha sombra antiga que apanham esses momentos, sempre a acarinhar um reencontro impossível com algum passado remoto. Mesmo com o seu agarimo, o mês deixa-nos fora de lugar, num mundo de fadas, semelhante ao nosso mas mergulhado numha estranheza de tempos extraordinários. Configura um lugar no que nom deveríamos estar mas que nos achega umha tímida bem vinda.)

No derradeiro dia, com o piso desmantelado, a cama fica como último recurso dum fogar que se reduz à familiaridade das mantas, do livro a meio ler, do teu abraço no meio da noite. No final do mês chega a vorágine de se instalar. Os pequenos rabunhaços da casa nova (a bilha, a janela, a caldeira) que reclama atençom sentem-se como pequenos fracassos, atrasos numha construçom que, na realidade, compom-se precisamente dessas ações. As visitas familiares à casa confirma essa nova possiçom, reconfigura relaçõs, permite descobrir novos jeitos de estar com os velhos. Cansaços importantes, incertezas do como iremos, ilusões ainda inconcretas dam-se cita nas primeiras jornadas. O lume da cheminé adquire umha importáncia nom aguardada, e ao seu calor imos amanhando e, mais do que finalizar ano, começamos.

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O agarimoso pano de fundo de novembro

O mês semelhava passar feito um molho de dias enquanto nós faziamos cousas. No entanto, novembro marcou momentos, achegou-me alustres amáveis do seu ser, esse que se conforma de passeios pola zona velha a parolar baixo a poalha na noite ceda. De cafés no Costa Velha. De voltar a casa ao calorinho logo de vagar polas ruas. O ser aquele que armámos entre uns quantos naquele tempo de descobrir Compostela e a nós mesmos.

A chuva atuou como um envoltório para boa parte dos dias. Sem chegar à moléstia, situou-nos as tarefas da vida contra esse fundo difuso, a tirar o foco das correspondentes transformações do mundo e pô-lo sobre nós, a ressaltar os nossos movimentos.

E nós fomos sobretudo deveres em novembro. O sonho da casa tranformou-se nestas semanas numha série de processos e decisões mais cativas que reclamárom atençom constante. Voltei à mesa de trabalho para solicitar novas ajudas para Barriga Verde, a atender mil questões que gerárom um ritmo de redobre contínuo. Nesse campo, o mês achegou -me umha nova consciência das minhas capacidades. Reduzidos ruídos de fundo, podo atender com muito menos esforço tarefas a ums níveis imagináveis para mim nom há tanto. Nom devo vencer resistências específicas nem preguiças e fago ajudas, visito médicos, atendo ao exercício, saio cedo passear, cozinho, ponho lavadoras e fago compra, trabalho e resolvo. Atopo apenas o anaco no final do dia para pousar, na cama a leitura aginha se confunde ante os olhos. Mas nom tenho a sensaçom de que nada falte, de que esteja a perder algo. Houvoo apuros, medos polos praços e as condições, polos possíveis problemas futuros. Mas só de jeito pontual fiquei prendido em questões concretas (a taxaçom pendente, a escaleira para o rocho, as águas grises, as árvores altas). Acabo novembro canso, sem sofrimentos, surpreendido por tudo o que levei e levo na cabeça. É certo que houvo dous dias nos que custou dormir. Algum mais no que acordei cedo de mais. Mas também houvo-os nos que recuperei o sono, ou nos que passei a noite do tirom.

Mergulhado nessas circunstâncias, os encontros que se multiplicam vivem-se como se fossem algo normal. Diria-se que o magusto em Campo Lameiro abriu portas polas que se botam as amizades todas a nos ver. Alejandra e os segredos de meses que saem à luz. Luzia a correr e quase improvisados. Tino de volta nas manhás. Salva e Maria sem preaviso. O Jocas como se realmente vivêssemos a quinhentos metros. Citas em Ponte Vedra que resulta singelas de ajeitar. Anna virtualizada em podcast, o recurso das conversas com Merlim e o seu próprio traslado como um jeito de me familiarizar com os episódios que ainda estám por vir.

No concerto de El Kanka recuperar essa alegria de cantar a berros, Martim e Laura a manter esse carácter companheiros de músicas com o que estamos a quadrar logo de anos. Guiar pola estrada do Corgo na néboa. O acompanhamento da matança e a normalidade que se adquiriu com essa família política. (Passar de volta em autocarro polo Pedrouzo e Palas de Rei e olha-los como lugares alheios logo de quatro anos sem visitas. Atopar a ausência de Domingo no baleiro do seu lugar no recanto da cozinha, nas proliferaçom das moscas que já nom mata). Um bocado de constipado para acabar a temporada e obrigar-se a certo descanso. Domingos de pausa na casa a olhar filmes maus ou botar sestas longas. Partidas que nom conseguem manter o ritmo. Novembro achegou em geral certa facilidade para se ver sem dar muitas voltas, em doses ajeitadas que achegárom por vezes vagares necessários entre a chuva e as tarefas.


Nas alterações desse viver meio no futuro, por dias apanhou mais peso o desapego que acompanha o abandonar a casa atual do que o sonho da que vai vir. Como algo inevitável, repassam-se por cima as sensaçoes vencelhadas a este lugar no que fomos indo felizes. O arrecendo ao voltar os domingos logo dos dias fora, quando vai calor. Os solpores que entram polas janelas a marcar o final do inverno. As paisagens da manhá. As temperaturas exatas que acada a galeria em certas horas. Os ruídos próprios do lugar, a mestura de campá extractora, refrigerador, os poucos carros que passam. Ao tempo, vai-se construindo a sensaçom estranha, ainda nom medo, de que a casa e os planos para ela vam se constituir umha companhia contínua, a ocupar para sempre umha parte da cabeça que nom existiu até o de agora.

Com a fim da chuva, os passeios rápidos polo Gaiás e o Sar achegárcom calmas assentadas na força na capacidade. A luz deitada nos caminhos revelou anaquinhos deste mundo de outono no que nos imos desenvolver os vindeiros meses. E que, no entanto, está numha mudança perpétua. Experimentei nessas jornadas a acelerar o passo e trotar brevemente, a intensificar com o esforço a forcada brevidade e viver dessoutro jeito os caminhos.

A pausa nas imensas horas de chuva deixou-me desnortado uns dias, sem saber exatamente o lugar do ano no que estava a viver. Foi a noite temperá a que me surpreendeu e acabou por me situar. Esse andar de recados polas ruas à luz das farolas fixo-se por um tempo um algo de estranho e sobrenatural com que nom contava já nesta altura. Nesses recantos revela-se-me umha cidade composta por pessoas a correr, aparentemente frenéticas fronte à perspectiva dum chao seco ao que já nom estamos afeitos. Olhámos desconfiados nesses primeiros dias enxoitos os céus diante dessa pausa que nos situa em terreio desconhecido: Já nom estamos no mesmo lugar que antes da chuva, cómpre olhar bem tudo de novo para aprender a nos desenvolver no espaço que agromou baixo a água. As montras cobram a importáncia do lume nessa noite, abrem espaços de fogar em todos os estabelecimentos.

Saídos dessa escuridade, que reconhecem como terreio próprio, fai-se mais patente a gente moça que ocupa as ruas, que vive a cidade a lhe outorgar significados diferentes aos que possui para mim. Entro em bares cheios e observo as múltiplas modalidades nas que nos fazemos companha, como nos iluminam as cervejas e a tortilha partilhada, o jeito em que se desenvolvem as conversas arredor num ambiente de geral de exaltaçom pequena. É como voltar a um território velho para mim, no que nom podo evitar a maravilha mínima de comprovar como continua no seu lugar, a ofertar un consolo que nom preciso mas que agrada.

Com a perspectiva de mudança, de ter espaço para acumular, aparece mais umha vez a questom da nossa relaçom com as cousas. E a possibilidade de nom sermos quem de nos dar mais luxos, de mercar mais cousas, por temos medo inconsciente aos vínculos que estabelecemos com elas. O temor a que nos falhem e nos trabuquemos na escolha, porque realmente tem importáncia a certo nível interno e infantil que as compras sejam corretas. Também por escassas, porque nom há oportunidade de que se diluam num mar de adquisições. Mesmo que com o tempo o historial acumulado resta-lhe peso a outro par de sapatos ou a um suéter infrautilizado e se vai afinando o processo de eleiçom, fica a culpabilidade de nom fazer bem, ancorados numha limitaçom de recursos que se nos gravou a lume na infáncia. E por trás andará a sensaçom de que nom merecemos determinados luxos, que tanto tem umha cousa que a outra. Que nom é nessas acçoes que imos encontrar plenitude nem felicidade. Que podemos safar com um mínimo que na realidade nom é tal. E aí também a renuência ao gasto nas férias, nos hotéis de luxo. Ecoa a cita que descobro em La Conejera: “Se sentía en casa en lugares de fealdad humilde. Era la única estética que podía abrazarla sin ponerla nerviosa. No tenía que preocuparse por si la merecía o no”.

Canda a esse, mesturei a Thompson com o eterno Pratchett, consolo quando a cabeça precisa amabilidade. Atopo nos seus livros um universo familiar no que me contam um conto, nom menos fundo do que outras leituras, mas em termos que ressoam agarimo. Acabei com um breve retorno ao Tim Powers, suspreendido ainda de lhe atopar os mesmos tropos em mais umha obra.

O final deixou umha certa mágoa por nom dar aproveitado a fundo o seu abraço de nuvens baixas, ar fresco e água. O ambiente espido destes tempos que puxo mais de relevo as companhias e os calores pequenos. Mesmo com tudo o que tivo, com o que nos achegou como lugar, nom houvo jeito de evitar que novembro tivesse carácter de caminho. Estes dias ficam marcados polo que tenhem de futuro, por serem um prólogo que, no entanto, bem nos deu para nos querer e estar.

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As beiras de Outubro

Os dias de outubro sabem cara a onde vam. O mês seguiu o seu próprio curso, independente de qualquer expectativa. No veraninho de Sam Miguel atrasou um outono que logo nos botou enriba de socato, cumha intensidade que nos teria deixado fóra de onda se nom for que o mês foi pola sua banda e nós pola nossa. A ocupações destes tempos restárom passeios e exercício, trougérom acordares cedos, deixárom-me ocos que enchim com pequenas tarefas, incapaz de ficar quedo. Os dias desenvolvérom-se concretos, sem grandes manifestações, com as forças medidas da madurez do ano.

Outubro quixo ser amável, apresentar-se como um setembro demorado no que paga a pena ficar. E amámo-lo de través, com a vida de novo meio posta no futuro, mas alouminhados sem apenas nos decatar polos seus céus e acobilhados na mudança das cores, no país da chuva. De jeito repentino escureceu os serões, meteu umha gana de caminhar a modo para se adaptar á que nom atopamos vagar para satisfazer. E a certa altura já estamos lá, sem traumas, a estrear o aquecimento e pôr os cobertores grossos, desfrutar desses calores interiores. Apanham releváncias os olores quentes, da comida e dos comércios, que persistem no ar polas ruas.

Arrincou o mês com o passeio à beira da maré viva, a encher e difuminar de jeito delicioso as fronteiras precisas entre o sólido e quase líquido, a redesenhar as contornas das beiras e reclamar o peso que tem esse mundo mergulhado sobre a realidade.

Aginha surgiu o projeto da nova casa. Nervos por dúvidas que dificilmente se podem definir. A sensaçom repentina de que é possível chegar a um lugar chave em mao, e ter lá um lote cousas que a dia de hoje semelham luxos que nom somos quem de nos conceder. As varandas, a galeria ampla, espaços mil onde estar e olhar. O jardim. O lugar para se reunir sem limitações. Os andeis para incorporar BDs. A possibilidade de nos transformar a melhor nesse lugar melhor. Mesmo sem levar enriba o reto e a incertidume de ter que modificar, adaptar e salvar, o projeto achega umha incerteza importante. O medo a como se acomodar nessa nova vida, de como levaremos todos os processos intermédios até lá chegar, tiram algo o sono.

A cançom dos primeiros dias da possibilidade é o Anda a estragar-me os planos. A boca aberta ante a velocidade com a que muda umha vida, olhar como vam encaixando peças nos ocos dos sonhos. Segundo se vai concretando o processo, umha das primeiras cousas que penso é em fazer altares de agradecimento no vindeiro fogar. Honrar os mortos da casa e os próprios, as correntes impredecíveis que empurrárom bolas caídas ao acaso que ativárom mecanismos que ninguém planificara e que nos levam cá. Concreto depois emoções e decato-me de como preciso retratos dos mortos próprios que gostava acompanhassem as festas para pôr no comedor. Quando nos ofertam um velho aparador, aginha visualizo a sua nova funçom como cámara das maravilhas, mais um altar de lembranças e descobertas feitas ao longo dos anos: as plumas que atopei, as pedras especiais, as postais que dérom no albo, as miniaturas e os restos dalgum enterro, tudo por fim por junto, a fazer presença de milagres e de emoções que me dérom vida, sempre tudo feito a agradecer.

(Nestes dias a retomar sabores que deixáramos no verao, a ausência de Domingo aparece no gesto de talhar o pao da casa, no sabor dos derradeiros chouriços que afumou, como contentores do tempo aquele do passado outono e de todos os que nos trougérom cá, que chegam como um saúdo desde o além e comemos cumha especial reverência).

Todos os dias passárom com um tempo fora de sim, com a perspetiva do futuro a se introduzir na quotidianeidade, a roubar horas de sono e a nos separar do mais imediato. A certa altura a possibilidade semelha inevitável, como apenas umha sucessom de trámites pendentes, e perde nervosismo. Mas esse despraçamento da atençom deixa-me como a nom pisar enteiramente este terreio, como se nom estivéssemos exatamente cá. A cabeça vai para lá quando se acorda no meio da noite. Sem nada concreto em que pensar, apenas com a dificuldade de ter que encaixar umha vida presente e outra nova. Com gana de se apropriar do lugar, pousar na terra, integrar as duas partes.

Fora dos grandes planos, transcorre umha jornada feliz a olhar passaros pola Arousa, a contemplar de novos as luzes desses terreios traseiros que som as marinhas. Boto boa parte do mês a tentar resolver a incógnita de por quê me chegam de tal jeito os corridos tumbados. Rematámos Ted Lasso, achegamo-nos a Zerocalcare. Produce-se a milagre do encontro com Anna, damos mantido o ritmo com Luzia. Sucedem-se tentativas contínuas com o Jocas, e no final conseguimos quadrar. Albiscamos o Fran, ceamos na dos Quintela, fazemos visita rápida a Ponte Vedra. O mês contivo um serám sozinho, umha fim de semana de pausa na casa, as limpezas e arrumações pendentes, um teatro inesperado, umha caneca com Alejandra, a afiançar a conquista de novos espaços. O jantar de primos, as partidas em Silvarrei, a ceia de sushi inesperada num domingo, O ano tranquilo em Moria e o final da partida da Candelória dous anos depois de a pensar. A visita do Carlos e os Antelo. As carreiras a escapar da chuva desde o Gaiás e por Meixonfrio. A ceia com Eva. Ir ao cinema ver o Corno, com os seus ciclos de colheita transtornados. Atopar a Olalha e cear fora, a redescobrer como está a cidade cheia de gente que também é nossa. Ritmos que prometem se manter, anainar-nos nessas redes de amizades e pequenos encontros contínuos que nom dou crido ainda como algo possível e quotidiano.

O mês avançou desde a novidade dos caminhos batidos pola chuva até a normalidade das enchentes a baixar polas ruas, sempre com esse ponto de surpresa e de satisfaçom por ver como a água reivindica os seus espaços. Dalgum jeito esse se esvair as fronteiras entre a água e a terra que marcou com fitos pontuais este tempo reflectírom também essa sensaçom de andar meio por fóra da vida. Outubro transcorreu, dentro da sua orientaçom clara, na sua corrente exata, a se combinar com esses limites tam difusos que acabam por arrastar e mudar as formas das beiras.

E assim, a olhar sair a lua por lugares surpreendentes e os solpores cada vez um bocado mais frios, passou o mês. Os amanheceres aos que lhes procuro o sol ainda mais ao norte do devido, os arcos da velha contínuos e mais próximos do que nunca, os horizontes afastados conformam umha paisagem que olho consciente de que a vou achar de menos.

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Celulosas

Ao abeiro da sentença que condena a Ria de Pontevedra a ficar com ENCE instalada sesenta anos mais, decato-me de como percebia a geografia da opressom que configuraba a cidade da minha infáncia e adolescência. Era aquele um mapa de fechamentos do que a daquela Celulosas era o fito mais destacado.

As cheminés e o fume marcavam o horizonte cara à ria, a fechar um espaço que tinha o potencial de se olhar como umha via de escape. Umha fortaleza que reforçava Tambo, a ilha proibida pola ocupaçom militar e que nos roubava o solpor. O fume e o cheiro a remarcar essa presença permanente que se vivia como um abuso, como mais um símbolo de injustiça.

Parte do abafamento que provocava a cidade vinha de aquele estar rodeada por fábricas. O rio túrbio até o impossível era mais umha barreira de proibiçom. Cara ao norte, o vertedoiro, a fatoria de cemento, as marinhas desertas e cheias de lixo, a Cross misteriosa. Ainda o Vao como mais um espaço vedado que completou a invasom da autoestrada, a fechar ainda mais a contorna com um novo muro. Da outra banda Tafisa, Monteporreiro e A Seca, lugares de novo perigosos, territórios alheios. Até a zona nova aparecia como um lugar do que desconfiar, alheio ao nosso jeito de vida de pobres.

Filtravam esses lugares, coma exércitos ao assédio dumha grande lixeira, a sensaçom clara de que nom tinhamos poder e que deviamos conviver com aquela merda. Contribuiria também o morar num casco histórico onde se infiltrava a desesperança, onde nom nascia nada novo e onde os mapamundis que armava a humidade nas paredes, o frio que se filtrava por baixo das janelas, a falta de luz, a invasom da contorna polos junkies, situava-nos num universo de decadência permanente, de impotência, no que a fugida aparecia como a opçom mais necessária. Umha fugida que no meu caso foi para o passado, o fantástico, os afetos, outros lugares, e que me trouxo, nom sem danos, até cá.

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Os fios do Harrison

Fará uns quinze anos que comecei a ver-lhe a semelhança com o George Harrison. Seria daquela, que o M. deixou o cabelo longo e a barba estrema quando, se revelou aquele parecido que já nom o abandona, nem logo de mudar tanto e tantas vezes a imagem. O jeito sincero de sorrir, o marco que as celhas lhe achegam a esse olhar sempre vivo, mesmo o jeito de apanhar o eterno cigarro, revelam-se nalgum momento de cada encontro, a vestir a pessoa com esse fantasma.

A falta de que o mundo o acabe de descobrir, M. é umha dessas pessoas que marcam a contorna imediata. Somos muitos os que o queremos polo seu riso, polo singelo que é atopar-se e seguir umha sempre eterna conversa sobre livros novos, a saúde e a vida. Ou polas mil anedotas das suas viagens e sucederes, o surrealismo e a galeria de situações absurdas e de personagens impossíveis que atopou polo mundo. A fronteira de Kosovo. O cinema de Pakistám. A aldeia de Córcega onde disparavam ao ar quando chegavam foráneos. As viagens en autocarro por Sudamérica. Ainda aparecem de quando em quando novas histórias delirantes que lhe reclamo constantemente deixe num livro.

O jeito de falarmos em qualquer momento, sem necessidade de que as conversas resultem longas, contribúe a mantermo-nos ativos dum jeito que nom é comum noutras amizades. A sintonia no humor, a possibilidade de lançar com liberdade todas as piadas que passem pola cabeça, com umha confiança que dá para exprimir o subconsciente, os tempos passados juntos, fam-se parte das alegrias mais lenes que traem os dias. E sempre com o ponto de supressa que dá o nos termos perdido a pista um bom feixe de anos e nos redescobrir ainda gostos e perspetivas. O jeito único de rir de sim mesmo, mantido desde a adolescência, pode alternar em minutos com sisudas análises de filmes impossíveis de entender ou de livros do mais abstruso. Com a sua sabedoria de terra, como a desses xamáns que voltam da loucura e do além, bem sabes que podes aguardar dele o maior sentido comum, um tam amplo que abrange até a possibilidades mais remotas.

A amizade do M. é pouco acomodatícia. Nom se ajeita ao teus ritmos, nom dá para cair em rotina. Sabes que por vezes vas ter que estar aí. O M. demanda quando é necessário, ainda que pete lene na porta. Sabes que nom vai agochar problemas por nom amolar. Obriga a saír do conforto das relações com outras pessoas. E gera também com isso umha relaçom forte na que nom pode existir a molície. Bate e pincha a emoçom, acaba por gerar um espaço intenso de cuidados mútuos, no que sabemos também que é possível reclamar em confiança. Existe com ele um país construído a meias no que é possível parar e colher folgos, na forma dumha chamada rápida a meia manhá, numha breve conversa de mensagens.

Os que o queremos também sentimos que o estar el bem dá-lhe um sentido aos esforços que leva te-lo conosco. Há umha história comum que nos une a um feixe de quase desconhecidos que partilhamos, por separado e em breves cruzamentos, momentos intensos e perigosos arredor dele. As acolhidas na casa, os esforços por o salvar, os acompanhamentos. Tanta gente mobilizada ao seu redor dá ideia do valor que acadou. E há umha argamassa aí que nos une a ele, cozida nesses tempos estremos que nos tocárom, no saber que estamos em tempo emprestado, que pouco faltou para nom haver mais conversas e ficar apenas com lembranças incompletas.

Andamos aí. A nos ver pouco. A falar muito. A achegar essas pequenas luzes aos dias e nos acompanhar discretamente no quotidiano. Ao bordo do mesmo fio de provisionalidade que habitamos com todo o mundo mas que com ele se fai mais patente, umha das linhas que configuram com mais definiçom o mapa da vida.

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A casa dos homens

Cousas do acaso e da família, acabo a fazer visita na casa dum gandeiro de êxito. No personagem reconheço a alegria que o possui. As piadas, a felicidade alimentada polo álcool, a aparente seguridade cimentada num triunfo convencional. Fai-se-me esse em certo jeito um lugar familiar, um contorno que conheço mesmo sem ter chegado nunca a encaixar por completo nele. Um meio onde me tenho sabido desenvolver, e polo que me tenho permitido ir à deriva: Umha casa dos homens, como aquelas que tenhem aquelas culturas reservadas para as fraternidades masculinas. Neste caso, umha pertença à convençom ligada no álcool e em falar como sabendo tudo de cousa qualquer, restringida a determinadas emoções e temas.

O bar, a churrascada, a conversa cheia de piadas, o pub. A seguridade dum mundo com códigos conhecidos, onde sentir um agarimo que semelha algum jeito de camaradagem e de certo respeito. As risas aparentemente livres mas cheias de limites e tabus. A felicidade singela e artificial que por tanto tempo foi do melhor que achegava a vida. Lá nos desenvolvemos na adolescência, e nesses códigos mantemos por anos boa parte das relações.

Também dava esse perfil para abrir novas relações. Que singelo tem sido cair bem, ajustar-se à convençom, pagar um copo, sentir-se quase à vontade nesse formato limitado. A certa altura, toda essa sensaçom ficou vencelhada a um tempo, o último no que me dediquei com diligência à viver a noite, a desenvolver-me nas festas e nas companhias, com energia inagotável, aquela alegria esgotadora alimentada pola genebra. Foi um tempo conexom, intensa mais do que fonda, com o mundo e com a gente, com as feridas abertas e umha veemência que nom se podia manter.

Depois, vivim durante anos umha opossiçom estranha a aquela época: Se daquela fora feliz, como podia nom o ser depois. Faltava integrar aquilo, reconhece-lo como parte de mim mesmo e nom como algo que nom som.

Olho agora a casa dos homens como um lugar conhecido mas alheio, e que se quer visitar de quando em quando, feito um desses lugares do passado nos que nom é já possível viver. Aquele tempo passa a ser mais um, o da carreira, como a escola, como as seguranças das amizades no liceu e a inseguridade interna que acompanhava todos aqueles dias. E fico em paz com ele.

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Os mundos secretos

Em Láncara, um dos mundos secretos: a paisagem do fundo da poça, a lámina da superfície, rota polas penas e as polas, o reflexo do ar intermédio, as copas das árvores, as nuvens, o céu a conformar capas e capas de assombro integradas.

Mergulhado no fundo dum rio, imóvel contra a corrente, com os pelouros quase a tocar o peito, a água clara na que as troitas fogem com desgana, atopo a emoçom da exploraçom, de estar a olhar cousas que nom estám ao alcance de qualquer um. Contemplo com asombro as folhas, ainda verdes, que se acumulam sobre a lama do fundo, como umha continuaçom inesperada do chao da superfície, a unificar uns ámbitos que semelham opostos. As masas de raízes das plantas aquáticas a se deitar cara o fundo.

Ante a emoçom que me achegam esses espaços, penso em como me constituíu essa adoraçom por mundos secretos. Em Hierbas de Asia El Último de la Fila resume a questom: “Saber cosas que nadie sabe”. Precisei fazer lugares próprios aos que fugir, espaços nos que ser herói, aos que pertencer, quando nom tinha sítio de meu.

O meu lugar de poder foi o rio. O carreiro secreto pola beira, que podia pensar que ninguém conhecia, onde nunca cruzavas pessoa nengumha, com esse percurso que sempre semelhava rematar até que se abria de novo e que apareceu num fim de ano quando tinha eu treze. Estava aquele caminho por onda o campo da romaria à que me levara o meu pai algumhas vezes, paralelo ao percurso que figera com ele em barca, medonhento a olhar as selvas que enmarcavam aquela água verde. Depois, águas arriba, atopar a praia de coios, reclamar a corrente para o banho num jeito de baptizo e me sentir um com os sapateiros, as pedras, os salgueiros de raízes retortas espidas pola corrente. Partilhar aquele fascínio com os amigos e construír lá um lugar no que cantar polo caminho, onde poder estar em liberdade, onde se fazia a vida.

Decato-me como foi essa procura de mundos a que me amarrou a Tolkien, a que contribuíu ao fascínio polos espaços em ruínas, onde a natureza reclama o seu direito e sanda a ferida do formigom, a lhe dar um sentido monumental ao que foram espaços utilitários. O mesmo as covas, os buracos nas árvores, ámbitos nos que criava esssa particular ligaçom.

Havia umha conexom curativa com o passado nessas localizações. Nóia era afinal um mundo verde de lenda, e aí cria atopar eu umha redençom cativa para aquela perda. Velaí: “Vuelve el oscuro animal que hay dentro de mi / a pacer en el radiante azul del ayer”. Esses mundos traziam passado, achegavam um alívio à ferida aberta que me constituiu por séculos e que era a mesma que me levava ao verso: “Déjame oler en tu piel / todo aquello que perdí”, o amor romántico como redençom final, sentido definitivo desde a mais ceda adolescência.

Com o tempo, a afinar a sensibilidade, fum atopando esses mundos em quase qualquer recuncho. E deixárom de ter aquela funçom. A escuma das postas dos insectos nas flores dum prado. As ervas que medram nos muros e nas beiras das estradas. A tumultuosa variedade das gramíneas e o jeito no que se transformam desde a primavera. A evoluçom das árvores dum parque. Os horizontes particulares, as vistas que compre ir procurar a certos espaços ou enquadrar com prismáticos. Crio assim um espaço que é também próprio: com o meu olhar, construo esses mundos, nom preciso conquistar montes, tenho-o nesse espaço de intimidade que se gera ao observar passaros. Constituo esses mundos secretos a olhar, a sentir que som dalgum jeito meus e só meus, e nom se trata já de pertencer a eles, mas da riqueza que supom saber que existem, que há algo fantástico por toda a parte.

Sei lá ainda por que é a natureza que me continua a acordar em particular este entusiasmo calado, de boca apertada. O briom, as àrvores, os rios, as rochas expressivas. E também a sua recriaçom em pequeno, as miniaturas coma altares que evocam de jeito concentrado esses mesmos mundos. Mesmo consciente de que nom deixa de ser um construto, continua a me abraçar esse mundo e sinto sempre a maravilha e um aquele rasto de perda na sua constante transformaçom, seja a gerada polas estações ou a que provoca o tempo e a humanidade.

Percebo nesse querer, imagino, as forças imensas que nos geram, os ritmos, o assombro de que ao nosso arredor todo um mundo se move e se reproduz e canta, medra e joga por a sua própria sem que nós tenhamos controlo. O país da chúvia, os movimentos do vento, as correntes. Nos meus mundos secretos sinto essas forças, fago parte delas e deixo-me mais um, com os sapateiros, as troitas, as rás e os insetos dos rios. Com os melros rieiros, os bidueiros e os salgueiros. Com a água que também me molha e a corrente que me leva com a mesma intençom e esforço com o que leva um tronco. É aí que me resulta mais singelo me deixar ir, na sensaçom dum fogar enorme ao que lhe aceito as turbulências. Será que é preciso ter consciência de que essa força está aí, a me sustentar e a mudar tudo em ritmos flexíveis, para me entregar.

Moro nesses mundos, mergulho neles ainda, construo-os e procuro-os quotidianamente, e neles é que me inscrevo num mundo grande cheio de maravilha.

“Eso no es gran cosa pero algo hay que escribir”.

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Um lugar Setembro

Sei lá se este setembro foi longo como tenhem sido outros. A sensaçom é de o ter passado com o ritmo colhido. Os dias nom nos apanhárom para nos botar a rebolos cara ao outono. Antes fórom achegando as mudanças em ondas, um bocado adiante, outro atrás, a alternar tempos de ficar na casa agochados na chúvia com calores e até os últimos banhos do ano, como a nos afazer aos poucos à transiçom.

Setembro mantivo umha intensidade justa que nom deu em insónias como noutras ocasiões, a sua força nom rebordou as nossas capacidades e levamo-lo com agarimo, até chegar ao ponto de o olhar, de jeito retrospetivo, como um bom espaço no que se poderia ficar e nom apenas como umha transiçom demorada: um lugar no que seria possível viver, fincados nessa sensaçom de potencial contínuo que o acompanha, a receber a surpresa das mudanças e dançar com as possibilidades.

Nuns últimos dias de férias, o mês começou ainda como um resto de agosto cheio de cousas extraordinárias. As carreiras ao aeroporto por Belém, a visita periférica à Feira Franca de Pontevedra, com a procura de recunchos nos que poder ficar tranquilos e botar a tarde como Sérgio e o David. Os carros com as rodas no mar no peirao polas marés vivas. A dentada leve dum cam fai-me reflexionar sobre como preciso um sistema de convivência no que confiar, e o jeito no que isso me tem levado por certos caminhos ideológicos.

A certa altura voltar a Bonaval e comprovar as mudanças dos últimos tempos, as folhas a mudar texturas, a árvore da emperatriz cheira de fruitos. Os passeios acelerados polos montes e caminhos com os primeiros cogumelos a assomar. Atopar no Gaiás umha frenética colónia de aviões, eco maximizado daquela que acompanha as jornadas de trabalho em Raxoi. Noutro dos passeios o saúdo dum minhato a me cruzar o caminho, e as histórias dos corvos a defender os seus telhados fronte aos esmerilhões. Na colheita, multiplica-se o trabalho de cozinhas, de preparar alimentos. E um supreávit de roupa a lavar representa o esforço por retomar certa normalidade.

O retorno da família do Jocas à cidade paira ao longo de todo o mês como umha possibilidade de reencontros que só se concretizam nos últimos dias. Como é habitual, estivemos todos a jogar com as possibilidades destes tempos, de novo como se setembro fosse crucial para definir as rotinas nas que se vai desenvolver o outono. Um passeio com o Salva. Fuco, Alejandra, Luzia, Anna, a visita de Ana, a reapariçom de Desirée, as tentativas por artelhar grandes encontros. No serao no que passo polo mercado da chuva abruma-me a quantidade de pessoas queridas que andam por aí, o difícil que é ajeitar os ritmos, a evidência da quantidade de janelas que se poderiam abrir e incorporar à vida.

Nos tempos mortos na aldeia, apareceu um certo cansaço de fundo. A beleza dos caminhos de Gomeám, os jogos com água no Tórdea e na canle do muinho. Os minhatos a peneirar um vento de mudança. Os carros que dam problemas próprios da idade.


Nos topónimos do vale concreta-se a ausência de Domingo. Vilachambre, Remol, Guimarei, Páramo evocam a sua voz, como se só ele fosse quem pronunciar essas palavras com toda a magia que possuem, feito o taumaturgo que lhe dava dimensom de lenda a esses lugares. Na extinçom da sua voz perdem esses sons a milagre que possuíam, desaparece nos anos que fórom embora com a sua morte e que também deixam de existir. Aquele mundo de caminhos e nomes e prados e nomes e regatos e nomes fai-se mais exclusivo do presente, cede o passado nesse silêncio.

(Há algo ao tempo terrível e agarimoso no silêncio dos velhos que vam calando com a idade e a surdeira. Esses tempos nos que ficam como ausentes da contorna, com a família a manter as suas conversas arredor, na cozinha, como se tudo seguisse igual. Anunciam nessa ausência a sua falta final, como a nos familiarizar com as conversas que haverá que ter sem eles presentes. A desapariçom fai-se patente também nas casas que ficam, cheias de cicatrizes da velhice. Apoios no banho, cadeiras de rodas, cajados, palanganas, camas adaptadas.)

Umha escapada de tarde a Ponte Vedra, a estranha caneca com um desses curmaos perdidos, pom-nos a falar nessas escassas claves que se partilham no seio fumha família afastada. Surgem aí os mitos e as expressões comuns incorporadas na infáncia através das gerações. Abrem-se estranhas conexões para encher silêncios criados no costume. Aparecem possibilidades de reparações cativas, postas a ponto, arrumar arquivos e documentos pendentes que deverám luitar contra os desleixos e as rotinas para se concretar.

A aventura de baixar ao Porto ver o Caetano confirma que nesta altura nom dá resposta a nada. O concerto maravilhoso nom me racha como outras vezes, desfruto sem dores, menos intenso, mais como o jeito de agradecimento cara a ele, que já nom me ter que me achegar nada que me falte, porque tenho tudo cá.

“O verao foi-se mentres durmiamos” di Belém ao acordarmos dumha sesta a umha tarde anuvada. E, no entanto, nom é certo. O verao e o tempo tudo somos apenas nós. Nessas variações, Aveiro fai-se umha sucessom de momentos entre botar tempo sem nada particular e as carreiras por chegar a jantar, voltar as bicicletas, entrar no hotel. O jantar em Vigo abre o foco sobre M. e C., ultimamente mediado de mais pola doença, a insistir em que há muitas mais cousas que nos achegam. Em conjunto, a escapada supom um tempo extra sobre as férias que, sem ser necessário, nos pom de jeito inédito ante certa sensaçom de ócio excessivo, de gana de parar na casa e construír quotidianeidade.

De novo o tempo desenvolve-se sem muita reflexom, como se as horas evidenciassem sem mais os seus próprios significados e ecos e levassem inscrito o seu sentido, sem precisarem mais pausas. A vida transcorre entom com a densidade exata para acarinhar a pele a nos rodear em todo o momento. O humor geral parte dumha satisfaçom queda, que por vezes se manifesta nas canções que se cantarejam sem nos decatar. Por cima, umha capa de pequena alerta, a atençom de termar dos dias para que nom nos devorem, e momentos de pequeno vagar a olhar polas janelas as maravilhas cativas das nuvens e dos horizontes afastados. As ilusões que preciso restringem-se à possibilidade de ir tomar algo na sexta, de conversar, de cozinhar, de fazer um passeio, de explorar.

Os banhos finais no Ulha e no Lérez, no entanto, amosam-me como continuam a ser os rios um meu fogar. Vivo mais umha vez a maravilha de olhar os fundos de pedras, as truitas a fugir, as beiras mergulhadas cheias de folhas caídas como um espaço segredo. Por mais que me diga que a natureza é apenas um construto no que projeto sei lá quantas cousas, continua a me comover, e mais quando podo mergulhar e fazer parte desses espaços nos que nom deveria estar um humano. A intromissom de ficar agochado a observar os passaros, de me meter no rio, de percorrer caminhos que nom anda ninguém ou de simplesmente me decatar de como mudam as cores e como caem as folhas racha-me barreiras com o mundo e situa-me na sensaçom de que tudo está bem, como um jeito de meditaçom cara a dissoluçom do ego.

Voltas novas com as possibilidades de casa, como chamadas de publicidade que nom se podem crer. Umha certa libertaçom ao renunciar ao projeto, e a estranha sensaçom de surpresa ao ver como é possível soltar com pouco remorso algo que tanto chegou a nos ilusionar e que tanto trabalho deu.

Transformam-se as nuvens, as temperaturas, as folhas que se misturam com as ervas, as mudanças som contínuas e nom deixam, no entanto, de achegar espetáculos surpreendentes, luzes que fam promessas de cousas a começar e anunciam movimentos a terreios acolhedores.

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Agosto rebordante

E velaí, chegou um mês dos que nom se podem escrever: Nom deixámos passar agosto. Mergulhamo-nos mas suas horas e deixámo-nos levar, sem intensidades maníacas, mas sem pausa. Dias cheios como poucas vezes, dumha visita à seguinte, dumha viagem a outra. As semanas de férias misturárom-se com as de julho, e os próprios dias livres combinárom-se com sete jornadas de trabalho também a rebordar de gente. Planos que nem artelhámos vinhérom ao nosso encontro e fomos na corrente até setembro, alongando as jornadas numha confusom enchoupada de levidade, de gente e de experiências, a catar um jeito diferente de vida concentrada.

O mês arrincou em Irlanda. Um novo encontro com Dublim, cada vez mais real e menos sonho. Glengalough e os seus carvalhos altos onda o lago. A paisagem que revela as diferenças com a Galiza. Também voltar a Kilkenny, hospitalário e ideal para o descanso. O passeio onda o rio e as dúzias de passaros a nos custodiar o caminho. As horas no caminho cara o oeste, a redescobrir os mundos em comum com Isa, a odisseia do Connor’s Pass, a descoberta da costa arredor de Dingle. A incerta subida ao monte Brandon, entre a néboa. Os oratórios e castros, a turba nas praias e as lagoas. A descoberta das catedrais anglicanas, templos dedicados à comunidade cheios de monumentos e de tumbas, de bandeiras e nomes de famílias a condensar a história de cada lugar. Os bosques coma postais de Killarney, com o seu briom no lugar exacto, os lagos a aparecer na beira do caminho, a fotogenia da combinaçom de árvores conformárom o cenário perfeito para umha saudade que, no entanto, nom me acudiu. Polo meio, um catarro leve que nom cuidei e que passou na mesma, incapaz de atopar o seu sítio nesta temporada.

Nos poucos dias em Compostela, outra maratona de visitas: Sevilha, Bruxelas, Holanda, Barcelona. Piquenique em Bonaval, reencontros rápidos nos que até dava preguiça se pôr por enésima vez ao dia de tudo o acontecido nos últimos meses. Da sua mao vinhérom reexplorações das Compostelas mais turísticas, a catedral, as artesanias, o retorno à velha esplanada do Embora, sempre acompanhada da antiga sensação de intimidade, as esplanadas várias, a sensaçom de como seria umha rotina cheia de vida social. Num espetáculo de circo impensado e naquelas canecas albisquei aquelas velhas noites de verao em Compostela, cheias de surpresas em cada recanto.

(O verao conforma-se, como já tenho comprovado, em momentos de sol a entrar de esguelho sobre um mantel. O sol filtrado determina, ainda mais do que o calor ou a luz direta, o sabor que se lhes supom a estes dias.)

No Courel a acampada embaixo das árvores achegou um pouso de calma aos dias intensos. Botar tempo na piscina. Sair e deitar-se olhar as Perseidas três noites seguidas, um bocado de cada vez. Caminhar de volta até Moreda, entrar na mina com o Orlando, reencontrar o Lor e se banhar, mais arriba desta volta. Sestas demoradas na aldeia, num cansaço acumulado que nom chegava a sentir. O dia polo Cebreiro e Astúrias. A cova onde o Lobo comeu o burro do Sam Froilám. O castelo de Balboa. Mais campismo no retorno a Covelo, um serao de chúvia com partidas imprevistas e visitas apresadas. Vilasobroso. O Castro de Tronha que ficava borroso desde a adolescência. A picanha, o dia inteiro na minha praia fluvial favorita. Ainda houvo para ver a gente mais próxima. Um jantar com o David na casa, ceia na dos Antelo, a celebraçom pendente de inaugurar a casa de Rapo. O Tino a saltar na bóia com forma de cisne. Muitas chamadas para se manter em contacto.

Nos sonhos alternei reparações no fogar paterno com encontros de festa agarimosa. Multitude de velhos e novos amigos, umha família que me integrou já na minha Salvaterra onírica, acolhérom-me nessas horas das noite, em muitas das quais, no entanto, estivem pendente de como me mover, com os autocarros confusos e como se nom merecesse estar lá.

Num último sprint, a fugida a Cabanas. Conhecer Pontedeume, decadente e cheio de perguntas como tantas outras vilas do país. A tentativa de fazer o Ring of Ares que se revelou impossível polas contínuas paragens e descobertas. Os restos do muínho de marés. Redes. Os cantís e as praias agochadas. O castro na beira no mar. O solpor em Chanteiro. A exploraçom das Fragas do Eume e os ecos de Killarney, a mágoa por nom se ter banhado no rio. Caaveiro. Mugardos e os seus recantos. A praia de Ares a inaugurar os 45 anos.

No peculiar deste mês estivo o se desenvolver esses momentos excelsos sem brilhos peculiares. Até certo ponto, fórom jornadas coma outras que, nem exigírom descansos especiais, nem provocárom exaltações. Desfrutei-nas como vinhérom, sem pausa mas sem esgotamento. As experiências acumulárom-se de jeito possitivo mas quase neutro.

Mália aos múltiplos retornos a diferentes lugares, nom houvo nada neste verao que me levasse a outros estios antigos. Nom aparecérom ecos do passado. Foi um tempo que se viveu por vez primeira, ao que nom lhe tivem que fazer pergunta nengumha para lhe outorgar sentido, que veu sem mais. Os lugares e os momentos nom chamárom por outras cousas, nom gerárom dor. Desenvolvérom-se entre a certa familiaridade à que tudo remete (toda cançom é eco de eco de eco na altura) mas sendo apenas o que fórom em cada momento. Como muito, apareceu o assombro ante a inesperada beleza de determinados espaços.

Desse jeito, o mês passou sem exigir tempo de reflexom nem de resposta. Apenas o retorno ao trabalho me alterou o sono, o que me fai pensar quanta portagem vital lhe pago de insónias e de preocupações a esse ámbito, quanto do ruído de fundo que acompanha a vida chega de lá sem me decatar.

O tempo partilhado com outra gente manteve um contínuo torrente de novidades, de perspectivas diferentes, de ideias que batem contra os limites nos que vivemos e levam a pensar noutras possibilidades. Mas ainda nom deu vagar para pensar nem incorporar.


Polo meio do mês, aparecem os síntomas dum outono que nom asusta, que se apresenta apenas como mais um tempo que viver. Apenas há pequenas sensações nas castanhas a medrar, no jeito no que as tardes decaem, no silêncio que deixam as andorinhas nós céus, nas folhas que ocupam cada vez mais espaços no chao, nos solpores vermelhos entre as nuvens ou na temperatura dalguns momentos logo da chuva. E que nom deixam de conformar um agosto ao que ficava deliberadamente cego durante anos. E tanto tem. Seguimos cá, com a ideia de que com apenas incorporarmos ao quotidiano umha décima parte do vivido neste tempo, da gente, das ganas, das escapadas, do tempo juntos, dos jogos, de todas essas pedrinhas que atopamos e atesouramos seremos quem de levar tudo bem.

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Julho apurado

Julho tardou em se fazer real. Mais livre da vorágine de trámites, nom conseguiu de entrada a tensom imprescindível para se constituir verao. Dava pistas, deixava impressões, botava umha ou duas horas nas que semelhava se completar. Afinal chegou a achegar dias alternos dessa combinaçom, sem conseguir ceder o seu carácter de miragem.

No primeiro dia sento sozinho na aira, a olhar o céu limpo e as folhas novas dos carvalhos, a flor que engalana os castinheiros e as amoras em potência que pendem das silveiras. Como a aguardar a ver que me tem a dizer o verao, a brisa vém cheia de arrecendos de 1983. A minha infância, olhada desde agora, quer ser toda verao, fai por negar outros tempos. A estaçom clama por essa plenitude recordada, bota por mim um intenso reclamo para procurar por ela. Nom tem volta de folha, este tempo estará marcado para mim até o final com esse arrecendo de ánsia, esse impulso por sair, a olhada sempre deitada cara ao além.

Do mesmo jeito, o mês contou com vários momentos de similares de aguarda por ver se me vinha o verão. Continuou polas semanas adiante a falta de consciência de estarmos nesse tempo. Pendentes de mil coisas, o verão continua a semelhar algo inconcreto que virá sempre depois, sem promessasas certas. É ao bater com as ervas secas, os campos segados, a fugida dos círrios já na fim do mês, que a evidência confronta a sensaçom e nos deixa nos desconcerto.

Por momentos, semelha que o tempo de pelejar com a casa atuou como rito de passo, e que a acumulaçom de tarefas e de ocupações contínuas, que enchérom as tardes sem deixar ocos e vagar, estivessem a alumear um novo jeito de existência. Como se agora me descobrisse capaz e enfrontasse obrigas e retos com um músculo novo. Quiçais perda a autoimagem de indolência que sempre me perseguiu. Poida que saia de acô transformado, mais apegado ao mundo e às suas responsabilidades, menos necessitado de fantasias. Sei lá.

Por vezes, conforma-se nessa tensom exata umha vida com pouca pausa, carregada dum nervo que nom tira o sono e que reclama ainda mais atividade para soltar. Fago exercícios e passeios, aparece gana de meter nos ocos encontros casuais e conversas improvisadas, como se fosse possível encher espaços da existencia com este tipo de demandas e armar um jeito de estar mais compacto e firme, como umha vida musculada por umha variedade de treinos  diários nessas disciplinas de jardinaria invisível com as que se cultivar a um mesmo.

Pergunto-me também se, como efeito secundário dessa transformaçom longamente larvada (ou acaso do abandono do café), estarei a perder capazidades mentais. A preguiça derivada do cansaço diário retira-me gana de leituras complexas. Apanho o sono aginha logo dumhas poucas páginas à noite. Nom me enfronto a retos intelectuais pendentes. Nom vou além do jeito vago de análise que supom esta escrita, dos comentários improvisados e desenvolvidos de conversas e de críticas televisivas.

Numha tarde enceto um projeto estranho de escrita, com um bocado de ficçom, e asombra-me a singeleza com a que aparecem as cenas e os diálogos, como se alguém mos estivesse a contar. E redescobro o satisfatório desse fazer artesano, como o criar argumentos para os jogos de rol.

O verao aparece na visita a Ons. A olhá-lo desde a ilha decato-me de como o meu verao estivo sempre composto de saudades. A sua intensidade estava conformada na tentativa de atopar de novo a suposta plenitude que acompanhava aqueles meses na infáncia. A continuidade de sol e tempo livre, a cheia de cousas a fazer. Agora o tempo som uns dias compostos de sim mesmos. Maravilho-me na luz do solpor sobre a costa. Sinto o asombro de olhar meio país desde o mar, e as perspetivas em que se percebe o perfil do país. Mas ficam livres estes tempos de andar à procura de nada. Nom vam já dirigidos a aquela procura, contenhem o mesmo potencial de prazer do que outros qualquer.

Aliás, decato-me de que do mesmo jeito que medram as chorimas e outras flores agochadas no fundo do inverno, também está o verão cheio de morte, de cousas que deixam de medrar e passam a aguardar polo seu momento germinal, da erva que seca, das flores que deixam o passo ao grao e aos fruitos, já feitos para o vindeiro ano.

As complexidades dos dias dérom para experiências contínuas. O parar um carro à deriva por Baralha abaixo, o passeio com Salva, as copas no Festigal e a alegria que acompanha a Arca da Noe, as visitas anuais de Eva e de Carmela, os encontros rápidos em Ponte Vedra. Castinheiras, o Pontilhom e a ponte sobre o Lérez, Santa Comba, a intensidade do Titiriberia fecundo em encontros e ideias. Os palcos e a antropologia que me levam de retorno a Santa Luzia dous anos depois da descoberta. Telefone novo, que dá para manter contacto com Luzia, Tino e Merlim virtualizados, Alejandra quase nom. Manuel Maria e o Castromil no teatro, e logo canecas como cousa normal. Apuros no trabalho. As tentativas de se pensar numha nova casa, além do ideal, e a comprovaçom que há pouca ánsia no processo. As múltiplas pegas sem penas na cola.

A visita a Laxe, com o seu helicóptero, a procura de lagoas, as chúvias, as ondas grandes, as partidas, o exercício, acordou umha sucessom de harmónicos, como em todos os intres da vida. Canda às anteriores visitas, marcadas pola primeira com a Belém Ambroa, aparecem esqueletes dum urbanismo velho que lembra à Noia da infancia, ecos das praias de Minho, a desídia/descuido no caminhar propria de todos os lugares de férias, a luz sempre invernal dos supermercados pequenos em Galeras.

Todo o momento conta com os seus harmónicos, por vezes tam intensos que podem se impôr à melodia. Ecos do vivido e do lido, sensações que acordam guiadas por fios mínimos e que às vezes se soltam e que adornam tudo. Nom há nada novo que nom conte também com esse agarimo que lhe sobrepomos de jeito inevitável. E a vida foi muitas vezes fazer barreira, evitar me perder entre todos os sinais simultáneos que achega cada intre da vida, num esforço extra que lhe veu fazendo companhia à existência em geral.

Existe um terreio na escrita e na arte feito da acumulaçom secular desses ecos, um espaço conformado polo tacto mol de pressionar a caneta contra um milheiro de folhas usadas, de atopar por baixo dos carreiros das letras os sucos de palavras prévias deitadas há séculos, ao jeito de congostras enterradas no terreio polos passos antigos, que acompanham mas n determinam os novos percorridos.

Gera-se aí toda umha paisagem táctil que lhe outorga peso a certas criações nas que se fai mais evidente essa densidade. Os movimentos dos títeres, as narrações orais, as tentativas de criar partidas de rol, as imagens de certas paisagens achegam esse mapa. Ao percorré-lo, de jeito inevitável, ergue-se um pó de séculos que se incorpora à criação presente, que lhe achega um jeito de raíz difícil de definir.

Afinal o verao conforma-se apenas de dias a passar, cada um deles com sabores diferentes. A expectativa do sol é quem de esmagar os matizes com facilidade, ao exigir-lhe essa suposta plenitude ao tempo livre desta época elimina opções. Nestes anos estou a ser quem de me deixar ir com o tempo, sem olhar tanto para como venhem os céus e mais para como andam as nuvens, a me concentrar nos chaos que sostenhem cada passo. Nom perdo nada na chuva, há apenas ganho no percurso, só do vivido é que se aprende e nom daquilo que nom acontece, e as alegrias nom tenhem a ver com outra cousa nengumha.

Remata o mês com a chegada a Irlanda e o pensar se o seu encanto é cousa da luz, da abertura de céus destas cidades chas, do peso do século XIX na paisagem e o jeito no que a conservaçom facilita o consolo da resistência. O reencontro é menos emotivo do que aguardava. Dum jeito similar ao que aconteceu com o Porto, Irlanda deixou de ser um acubilho para os sonhos, e compom-se, como tudo ultimamente, mais de sim mesma e menos do que eu lhe aponho. Ainda com certa estranheza, navego com um passo mais firme neste percurso.

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As gravidades de junho

Nom houvo lugar em junho, neste mês foi impossível ficar. Transformou-se num percurso revirado polo efeito de diferentes gravidades, nom se deixou olhar por junto. Os múltiplos focos de atraçom figérom do tempo umha cousa torta e estranha, um carrousel emocional. Apenas o facto comum da intensidade marcou estes dias, que polo demais adoptárom todos os sentidos possíveis. Obrigas, encontros, espaços de calma, tragédias, tarefas e temores atopárom acobilho estreito nestas datas.

Junho recebeu-me a se apresentar todo o acolhedor que pode ser. Surpreendeu-me num passeio inaugural com a temperatura perfeita, as sombras no seu lugar, a brisa bem modulada a acordar os correspondentes arrecendos a cada passo (de flores e eucalipto, da pista bordeada de silvas, das ervas que começam a secar: tudo arrecende quando junho bota a andar).


Nalgum desses momentos, o mês compactou-me de jeito efetivo comigo mesmo, tirou-me os ocos de dentro baixo essa abrumadora abundáncia de sensações e mergulhou-me numha ligeireza especifica, num tipo de alegria que só se atopa nos caminhos desta época, quando dá gana de abraçar o mato que achega bem-vinda ao caminhar. Com certeza, aparecérom brevíssimos instantes de dançar na cozinha, de olhar as nuvens, de ficar na galeria de jeito deliberado a encartar a roupa. Belle and Sebastian soárom mais e melhor nestes tempos, a sintonizar com os solpores ardentes e silandeiros, essas horas de mundo que fica parado como se fosse noite. Nesses momentos, mais um mês, agradeço estar cá. Acabo por lhe retirar a antipatia a todos os tempos, e apenas lamento nom os ter beijado mais a modo no que me oferecem.

E, no entanto, junho foi terrível. De jeito mais concreto, houvo umha semana longa, dez dias que abaneárom a existência. Faltou pouco para perdermos a M. O terror da noite a aguardar que acordasse em urgências. E ainda o medo a que nom retornasse onda nós e ficasse dessoutra banda temível do mar que abeira. Ainda viriam mais tarde, como vagas que nom podem adquirir a mesma importáncia, apareceu o desprendimento de retina leva da mae, os ingressos arredor, os problemas por várias partes. 

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Como umha fenda no mês, morre Domingo. Liberta-se a tensom da agonia, fai-se por vez primeira evidente o abismo dumha ausência, que ainda nom incorporámos.

Fica um silêncio particular na casa dos mortos. Por muito que seja o ruído, há umha densidade de óleo, a atmosfera marcada pola ausência especifica da voz que nom se há ouvir mais. Fico sozinho nesta casa por vez primeira, e percebo-a encolhida sem a gente, com o corpo presente de Domingo a encher tudo, a reter o alento contido na tarde. Nos arrecendos misturados das flores, coas falsas candeias arredor e o fato elegante, há algo das fotografias de antigas vodas, dos anos 70, no ambiente, como se a despedida se envolvesse nos anos de força do defunto.

Por um tempo, tudo orbita arredor do funeral. O peso do velório na casa, a multitude, os debates sobre flores e procedimentos, o medo à chuva mestúram os detalhes mais nímios com a magnitude da morte. A combinaçom enchoupa tudo dumha irrealidade reforça dapolos fenómenos atmosféricos: as chuvas repentinas, as luzes a ameaçar sempre tormenta, o maior arco da velha que nunca olhei, nuvens lenticulares. E também as bandadas de aves que aparecem por toda a parte. Minhatos queimados e comuns, cegonhas a fazer remoinhos no ar e a rachar o que de distante e estável pode ter o céu com pontos pretos e móveis, inalcanzáveis.

Depois, nos primeiros dias, desenvolve-se um malestar inconcreto. A vida reajusta-se à ausência e as cousas pendentes, o shock, a continuidade do quotidiano interferem abondo para que as horas transcorram com areias polo meio, para que, além da tristura, surja o incomodo de estar num universo incorreto, aquele no que nós continuamos vivos enquanto alguém nom vai estar mais.

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Em paralelo, os dias nom deixárom de medarar. A longitude extraordinária que acadárom nestas semanas, a sua luz de seráns (cheios de ecos de veraos que já fórom), contrapom-se à velocidade com a que o mês nos atrapa. Junho exige parar, baixar à festa, atopar-se na rua, e muito a miúdo nada é possível. Fam-se as jornadas frustraçom e miragem que nom chega a esperança, o degoiro de olhar a montra dos joguetes, os posters de caribes paradisíacos que nom chegamos a catar. Esses seraos demorados do final da primavera apresentam-se cheios ainda dos agarimos do outono, e ao tempo abrem a vista ao horizonte, como se fossem o cume dumha ascensom que leva toda a primeira metade do ano.

Ao tempo, essa mesma extensom do dia tira-lhe urgência às horas, convida a demorar, ficar parados, sentar no parque ou caminhar, por fim, em calma. A gana é de atopar um concerto com o que nom se conta, descobrir um recital agochado, tentar um local novo nesse jeito amável de exploração urbana ao que convidam estes serões que semelham eternos. O verão promete esse jeito de paz, de que som possíveis as novidades caladas, de que abonda com estar para que aconteça a vida.

Num desses raros passeios por bonaval com Belém dá o vagar justo para se pôr em ordem com a vida. O concerto surpresa do João Afonso apareceu como um desses momentos necessários. Um falcónido a voar cara à Berenguela deu posto de relevo estes céus de junho que fam olhar o mundo em cinemascope, o sol demorado na pedra, o tempo a se desembrulhar dum jeito mais pacífico ao habitual.

Assim, os encontros de junho vinhérom sem grande esforço. Houvo bem quem lembrou de nós, quem chamou por planos para os vindeiros meses. Jantar em Compostela, Luzia, Alejandra, o Sérgio de visita e em Ponte Vedra, as visitas exprés do David, dos cunhados e da Cris e do Jocas, heraldos dumha normalidade de canecas rápidas polo meio da semana. A exploraçom do peirao de Marim, a revisom das transformações do Gaiás, Bonaval, a Ilha do Covo. Arredor do solstício Isa e Jose a armar as festas e os espaços, os reencontros onda a fogueira, os Quintela, os Guerreiro, a visita a Briadoiro, sempre escasa: a gente toda a arrumar o bordo do verao.

Mas no geral, nas suas pressas e alterações, o tempo correu como umha promesa de verao incompleto, a vaticinar frustraçom na perspectiva de estio: Nada se completará, vagaremos entre trebões e obrigas ao longo de toda a estaçom, nom haverá plenitude e como muito poderemos aspirar a umha calma precária e agrisalhada, a inquedanzas do tempo antes da tormenta a se impor.

O mês foi de reclamações, processos legais, notificações certificadas como nunca se viram. Os trámites, quanda ao final das convocatórias de ajudas, contribuíron em certo jeito a centrar de novo o foco no mais próximo. A fazer por afastar a casa do pensamento, situada num remoto lugar futuro sobre o que nom temos poder, olhámos de novo ao perto e estava tudo cheio de cousas pendentes.

A vida adquiriu entom umha densidade armada das horas que dedicamos a arrumá-la. Organizámos férias, resolvémos papeis e processos, atendémos chamadas, fomos ao médico, fazemos provas, enchémos a cabeça de ocupações pouco extraordinárias que transformam o gerir a vida nalgum tipo de treino, um exercício no que compre ser constante: arrumar, lavadoras, lava louças, cozinha, compra, médicos, gestões burocráticas, bancos, luz, Internet, gás, lentes de contacto, a tentar pôr tudo no seu correspondente espaço, a manter higienicamente separados os departamentos para evitar contaminações cruzadas e que se introduzam na cama e no sono qualquer umha destas questões.

De resultas de tantos acontecimentos, preocupações e decissões importantes, colhe peso essa vida cativa, a tentativa de se atopar num jeito de fazer e caminhar. Procuramos rotinas que nom se sintam ameaçadas e desde as que semelha possível construír os dias. Nestes tempos de trevões, semelha ficar sempre para mais adiante esse ajuste, como se dependesse de factores externos, de mais descansos, de menos chúvia.

Nesse caminho merco pantalões de linho, subo ver umha expossiçom à Cidade da Cultura, agasalho-lhe um telemóvel aos velhos, apanho entradas para o teatro, cumpro escrupulosamente as citas médicas e nom deixo os recados para outro dia. Incorporámos aos dias sessões de militáncias eólicas, manifes, acções.

A falar com gente sobre como mudárom as cousas nestes vinte e cinco anos, aparece-me um bocado a necessidade de me olhar em evoluçom, pôr o foco nas transformaçoes que se me dérom. Tendo a me perceber mais parado do que estou, a sentir a vida como a carregar mais esforço do que ao melhor tem, a desejar algo um bocado mais singelo e mais alegre. (É minha canção resto de oração / Que fugiu da igreja / Não quis mais do vinho / Foi tomar cerveja /Voltou ao jardim / E tá esperando gente / Que só disse sim cantava a Marisa a lhe pôr jeito a essa certa ánsia).

E diria que baixo a pressom atual começam a mudar os ecos das cousas. Nalgum momento de pausa, semelha construír-se na minha mente um departamento, ainda frágil e provisório para um passado próximo. Dalgumha maneira arrumam-se as lembranças, clarificam-se as sensações e há canções e arrecendos que levam dum jeito diferente a momento mais ou menos achegados, com se os tivesse deixado atrás. Pergunto-me se será este o fim do presente perpétuo que semelha ser a vida desde há anos, se dalgum jeito estarei a passar umha etapa.

No final, o verao desaba de jeito repentino, marca que o mês foi embora e deixa uns dias ainda suspensos e indefinidos num tempo de festas, calor, cousas que se podem fazer. A estaçom promete paz mas achega ainda a sua urgência. Por um momento vém a vertigem, e a sensaçom de que vam lá um terço dos dias possíveis e nós aqui, ainda a aguardar polo momento no canto de passear depois da ceia. Essa gravidade deforma o mês inteiro, emborca-o cara à sua última semana como se todo o demais fosse apenas um apêndice que nom atendemos, rêmoras doutra época. Permeia, de jeito retrospetivo, a totalidade dos dias, oculta-os num manto dourado, publicidade barata que os tira da sua realidade e chuvas e mortes e doenças e ocupações.

Na realidade o que assusta é o final, essa apariçom repentina que supom julho, o autêntico cámbio de ciclo, que nom chegamos a concibir, como se junho puidesse continuar num jeito de progressom lene, no mesmo carreiro de maio, numha luz crescente e tempo ainda para se ajeitar. E nom, julho aparece agora como o começo dumha carreira com solpores limitados que compre aproveitar, mesmo sem a urgência doutras épocas, mas imenso no seu potencial, cheio de concertos, gentes, espaços e banhos que som ainda algo de pecado perder. Com essa vertigem me debruço no maremágnum de possibilidades que se abrem. Sei lá como as concretaremos.

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Os futuros de maio


Nom demos parado maio. A voda de Isa e Jose apareceu no começo coma umha paréntese de irrealidade a alterar a rotina de preocupações e cousas pendentes. Resultou difícil achegar-se a esse tempo extraordinário, tam afastado dos dias comuns. Em maio multiplicam-se as citas perdidas, as cousas que se podiam fazer, e nom se abordam.

Nessa e noutras oportunidades de festa arredor, a mocidade aparece de jeito enganoso como algo que deixamos atrás há menos dumha década, que permanece ainda em nós, a aguardar circunstâncias favoráveis que nos ham tirar achaques e nos voltarám as ganas. E que somos nós mesmos quem nom lhe queremos dar chance, convencidos já de que o bom está cá mesmo e de que aquilo que queremos na realidade é calma e algo de tempo mol para nos deixar ir e resolver alguns desses proídos que nos mantenhem acordados fora de horas.

Os dias desenvolvérom-se com certa saturaçom, num cansaço que se foi dispersando ao longo do mês. Fórom aparecendo noites de dormir bem. Recunquei numha caminhada enorme. Batim a marca oficial, que nom a real, de estar em forma. Trabalhei a fundo em gráficas e letras, e outras histórias. Descobrim o país da chúvia. Tivérom estes dias os seus momentos de agóbios com as ajudas. Tudo se puxo mal por certos momentos: O carro, as doenças de velhos e de novos, a ortodóncia de Belém, a fontaneria na aldeia, os auriculares que falham, o telefone, o feche do ginásio em linha. Revelárom-se necessidades pendentes que até o momento nom se viram: Calçado, um cinto, pantalões, umha gorra para o verao. No meio de tanta ocupaçom e necessidades, os encontros (jantar e café com Isa, Luzia, Tino) ficárom breves e insuficientes, como se a primavera exigisse se desenvolver em companhia.

Como se previa, maio marcou fronteiras. A das sombras, para começar. Estes dias ratificárom a divisom da paisagem em áreas. As folhas completas fam seus a base de sombra anacos do chao, cambiantes e efêmeros. Conformam, esses perfis um mundo bem mais sólido, concretado baixo esta luz crescente, do que aquele do inverno. O peso do sol compacta a realidade, outorga-lhe umha entidade que fica nidiamente separada dos céus. Nom há possibilidade de se enganar, estamos num contorno onde cada cousa corresponde a um lugar concreto, sem enganos.

Nos malestares de maio aparece um desacougo de estar no meio, com dias nos que, mesmo a ter cousas por rematar, dam para relaxar a cabeça. Saio passear a Bonaval e fago-me consciente de como venho dum tempo de me agarrar a lugares sombrios, do Outeiro de Watership, do ambiente invernio das partidas de rol que achegou por meses um conforto de lugar velho. Estivem a procurar o amor ao outono em signos que apenas aparecem nesta altura, no frescor das tardes, na terra molhada. Agora atopo-me sem preparar para o verao, um tempo que nom permite ficar calado e caminhar sozinho, nom achega tréguas de tardes de chúvia que passar na casa. Como muito, facilita o se deitar baixo as árvores, deixar-se levar na hipnose que o vento prepara com a folhagem. E há que se afazer. Mas a realidade será que venho dum tempo de sobreabundancia de atividade, da alerta constante, e que nom sei abandonar de tudo sem culpabilidade. Maio é como deve ser, som eu o que nom dá apanhado a sua sintonia.

Os meses de primavera tenhem o carácter inasível que lhes proporcionam as mudanças vertiginosas. Ao tempo, por momentos semelha conter a promessa de que vai ser possível se deitar ao sol e que o conjunto seque o ruído de fundo que nos acompanha. Como se neste tempo, e no verão, fosse mais singelo se deixar estar simplesmente, abrumados por umha conspiraçom de vida na contorna que tem a capacidade de nos baleirar como por saturação. Nom podemos atender-nos e atende-la, tam extraordinária ela, tam cheia de reclamos e matizes, feita um molho enorme de evocações que nos toma por asalto até nos anular o pensamento.

Desse jeito custa imaginar o que vém por diante. As possibilidades de descanso para o verão resultam pouco concebíveis na altura. Sei lá se acadarei mergulhar-me nesse tempo, se serei quem de deixar cobrir a cabeça pola água até me unificar no momento baixo a pressom desse abraço. Compre mitigar esta cisom na que me desenvolvo há tempo. O futuro tem direito a descansar, deixar de tensar-me a vida com tanto projeto enorme e ser de novo pequenas melhoras e os encontros planificados da semana, com ocos nos que a espontaneidade se poida desenvolver ao ritmo do briom.

E, no entanto, achego-me a esses dias com a incertidume de se é isso o que quero, se estou para tanta exaltaçom quando o pensamento primeiro é sempre de agocho, tranquilidade, convalescença. Sei lá. Agradeço a tentativa quando menos. Hei acudir aos ríos e à erva, encherei o olhar de polas a dançar no vento, deixarei-me anainar polos grilos, as folhas ou as ondas, sem deixar que me superem, apenas que fagam por me recuperar. Nestes tempos Doutor em Alaska pom o contraponto, um noiro conhecido no que amarrar cumha corda frouxa que nom turra por mim.

Nas breves férias (o dia com os Segarra, o mar espido, caminhar, beber, dormir), fago por retomar leituras de antropologia que sempre me vejo canso de mais para abordar. A claridade das explicações, os achados constantes, o jeito detetivesco da disciplina continuam a me emocionar o tempo que, coma a escrita, achegam-me umha imensa preguiça. Desfruto os primeiros banhos do ano sem emoções engadidas. As sensações gratas nom me atrapam como noutros tempos, em que sacralizava esses fitos de vida. O Mediterráneo e o seu sempre exuberante fundo nom decepciona. As rochas e os peixes, o descobrir e o conhecer, mantenhem-se-me como grandes prazeres.

A longo do mês confirmou-se a minha afeiçom ao chá preto. Atopei muitas manhás nesse estado mental que produz a beberagem. Sem me livrar de tudo do sono atrasado, descobro-me a miúdo baixo a sua influência numha nebulosa conformidade com as cousas, adubiado com certo pouso afastado dumha alegria gasta. Amo as partes do mundo com vagar nesses momentos e atopo-as situadas em seus lugares. Desfrutei também neste mês de jeito particular do sabor do cozido e as suas variantes, cada bocado a nos levar a um lugar diferente, sempre agarimoso no passado.

Maio também foi um tempo de assombros de passaros. Combates entre um esmerelhom a levar umha pomba com um corvo e umha gaivota. Um pardal que visita a nossa casa. Fochas, umha bubela, a parelha de esmerelhões de Alacante e a de minhatos do Gaiás. Crias de parrulos, de mergulhões, de galinholas. O ninho do ferreirinho. Lotes de avistamentos fugazes, lóstregos sem identificar. E três lontras juntas de agasalho.

No político fica claro que a nossa esperanza só pode ficar no horizonte afastado, e que só a focar em pequenas conquistas é que podemos, mais umha vez, atopar consolo. O mesmo compre assumir que moramos num tempo escuro e agradecer o bom que saia, por cativo que seja, como umha milagre.

No final do mês aparece a proximidade da morte. O temor aos cuidados e à agonia enfronta-se a realidades complexas nas que ficam espaços para o agarimo, os risos, a serenidade para enfrontar o final. Mistura-se a gravidade do período com as cousas de cada dia. A distáncia impede que tome tudo, e criam-se cenários paradoxais nos que essa sombra bate com o quotidiano. A vida, quando reclama o seu peso, revela-se sempre como mais complexa do que se podia pensar.

Num dia concreto pola rua chega-me o vislumbre do que supom umha manhá de primavera. Conecta essa luz com um tempo concreto da vida: os 11 ou 12 anos, ir à biblioteca do trinque nas manhás dos sábados. Tudo era novo naquele tempo, e ficou vencelhado aos céus abertos e ao arrecendo dos livros acumulados. Daquela provém todo o poder de maio para erguer esperanças, com esssa luz que infiltra de jeito oblícuo desde o futuro e transcende os dias que vivemos. Tem aí o mês algo que nom é das horas que abrangue, ficam os tempos inclinados cara a lugares que nom som, e o terreio fai-se menos firme, esvaradio cara a umha esperança inconcreta, caminho da fantasia e diferente de todos esses planos que nos andam a complicar a vida. É esse desequilíbrio que nos esgaça cumha maior facilidade do que outros meses, que nos achega desacougos em planos ignotos. Maio trabalha por detrás e nom sabemos na realidade o que nos anda a fazer. E é assim, desse jeito meio inconsciente e desequilibrado, que se pode amar.

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O país da chúvia

Certos dias de maio permitírom verificar que todas as horas na chuva conformam um mesmo tempo. O desenvolvimento desses céus anuviados que enquadram toda a situaçom e nos ponhem um telhado às aspirações. A pontuaçom das pingas nos cristais a nos lembrar a recomendaçom implícita de ficar na casa. As ruas molhadas, nas suas diferentes luzes através das estações, configuram um período contínuo e exclusivo, afastado do resto do universo, a transcorrer com as suas próprias normas de recolhimento e de certa decepçom, num convite a olhar e ficar pausados.

Os tempos da chúvia som calados, sem jogos nem chios de passaros. Tenhem o briom como bandeira e levam o olhar cara abaixo. Desenvolvem-se com o poder de parar um bocado o mundo, a o encher com o seu rumor dumha calma temerosa. Dinamizam a paisagem com o fluír da água, revelam as imperfeições do chao na profundidade das poças, engrandecem os recantos a os transformar em canhões, ribeiras, oceanos que armam novos mapas no cenário quotidiano

Com os anos, consegue algo de acolhedor esse espaço limitado pola água. Configura um lugar que continuamos a habitar quando todo o demais muda. A compressom que provocam as pingas, o peso das nuvens, situam-nos mais em nós mesmos, comprimem-nos contra a nossa própria história. A humidade abre-nos os poros do pó que nos conforma e ençoufamo-nos no nosso próprio húmus, mais integrados com a história que nos fixo.

Abrolha nessa fertilidade um fio de conexom com os tempos da infáncia, quando aprendemos a olhar a chuva com genreira por tudo o que nos impedia de fazer. Era daquela a primeira barreira cara ao mundo que nom vinha da autoridade paternal, mas que aparecia inexorável, emanada do poder duns deuses imperturbáveis.

Continuamos aí sepultados baixo as mesmas pingas, num processo já sabido, agora a reconhecer nos diferentes movimentos da água momentos já vividos, sensações molhadas, viagens marcadas pola humidade, momentos de vitalidade a desafiar esses limites.

Tanto tem que seja maio como dezembro. O território da chúvia atinge tudo, esse país unifica o mundo baixo o seu manto e leva-nos à seguridade levemente opressiva de que existe um terreio que nos fará sentir deste jeito, de que este ámbito familiar foi e seguirá a ser, mesmo sem nós. .

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O passo de abril

Abril apresentava-se como um mes de estreia com o ar de começo que nos quer botar ao ar livre, ao jeito dum tempo fresco, do trinque, ainda arraigado no adubo húmido dos meses anteriores. Abril possui um feitio de fronteira, contém os onze dias nos que tudo muda arredor, e que sempre aparecem acelerados mália aos múltiplos anúncios. Atopamo-nos instalados numha primavera repentina e semelha que estamos sempre a perder algo enorme, a mudança definitiva, por muito que tentemos olhar. Como se depois já vinhesse outro tempo imparável e cheio que nom nos vai dar trégua, e nestas jornadas morasse ainda umha derradeira oportunidade de vagar, de aboiar sem remorsos nos últimos traços do que nem nos atrevemos a chamar inverno.

Boa parte do mês passou-se a olhar possíveis horizontes de futuro, a pensar e gerir casas, a pelejar e investigar esse futuro temível e aparentemente enorme que nom acabamos de fechar. Ansiedades, incertezas, consultas, praços e complicações configurárom dias de grandes alterações emocionais, insónias de pensar quartos e ilhamentos e custos e como fazer.

(Mercar umha casa tem algo de se fazer adulto. Quando um mora de alugueiro, o proprietário tem sempre um aquele pai, aquele a quem se pode chamar quando racha algo, que tem umha responsabilidade no nosso benestar. Ao tempo, é também o culpável das cousas que nom estám ao gosto e nom se amanham, do espelho gasto, da pintura feia, das janelas que nom acabam de fechar bem. A perspetiva de mercar é também a de deixar de contar com esse respaldo, de ficar sozinhos e culpáveis de tudo o que nom esteja bem no nosso fogar. Como em tantas cousas, um madurecer serôdio que enfrontamos nestes anos)

Houvo visitas à aldeia, a limpar o carro, ajudar a montar invernadoiros, queimar-se no primeiro sol. Olhar como novidades um pimpim, um linhaceiro, um minhato real, os ferreirinhos. Comer carnes novas. Achegar-se ao mundo dos trabalhos masculinos a jeito de observaçom participante desse espaço antigo de arrecendos de ferro quente e pintura, da sombra lilá da luz da soldadura, as medições e os cortes. No final do mês, a festa, os encontros sociais com a família política, as descobertas dessoutros jeitos de estar no mundo desde a montanha com diferentes idades.

Breves viagens a Ponte Vedra, entre elas umha acelerada e intensa a dar umha palestra sobre o projeto Barriga Verde. Na cidade e nos seus arredores atopo em cada passeio o eco da fantasia que atopava em toda a parte para fugir na mocidade, umha capa de ilusom que colocava em todas as ruínas, nas árvores e nos rios, a evocar mundos inexistentes, magias inventadas. (Acho que medrei numha paisagem feita de abandono e deterioramento, carregada com capas urbanas de tempos anteriores, todas elas a se degradar entre a incapacidade da administraçom para as manter e o desleixo e a incomprensom da gente, mergulhada em passeios, lixeiras, faróis que sentiam alheios ou diretamente hostís). Agora aparece feita um som morno que conta um agarimo sem dor, apenas mais umha relaçom familiar com as cousas do mundo.

A visita Tambo, em convivência com o Sérgio, tirou a espinha da infáncia de olhar aquele lugar nom apenas distante, mas realmente proibido. O passeio exigiu entrar em cada buraco e ruína, reivindicar para os pés um espaço que vivim como restringido para aqueles outros, os militares, os betos, as boas famílias.

Sem grandes pausas, figemos um domingo de Páscua para guardar, a percorrer quantos parques nos quadravam polo caminho. Fazer a prova de ir a Codesedas a caminhar, e depois a Selva Negra, a Granja do Gesto, o Monte Pio e a Finca do Espinho, o parque de Galeras, o de Vista Alegre, o da Música, o caminho onda o rio até o de Vite e afinal chegar à casa, vinte e três quilómetros e passeio e redescoberta conjunta de lugares, com pausas de canecas e de olhares.

Nesses dias, a presença dos alemães deu em contínuos confrontos com o que eramos há vinte anos, com as mudanças da cidade, com os Ambroa e o Marcos. Ceias e canecas e cafés incrustados nos dias de jeitos que semelhavam impossíveis, e essa sensaçom que achegam sempre dum mundo com as cousas mais colocadas, e de afetos que permanecem intactos e cheios ainda de possíveis encontros. Coincidiu essa chegada com as tentativas por gerar um costume de sair e tomar algo. Uns vinhos, uns petiscos depois do teatro de Xohana Torres e do monólogo do Ángel de Martín. Também Northern Exposure e Innishire como espaços partilhados. Esforços por termos uns momentos, um estar doutro jeito, um colher ar, que boa falha fixo.

Na mesma linha de apanhar céu, multipliquei passeios. Na exuberância das flores, resulta extemporâneo um jeito de caminhar que ainda nom responde ao acolhedor da contorna e das temperaturas. O percorrido sozinho perde o aquele de heroísmo e da resistência que acompanha os passos em tempos anuvados e de noite temperá. Agora nom tem jeito querer voltar casa, compre diluir o esforço, tudo clama por explorações, sestas na erva, momentos de conexom com o universo e nom apenas este calado passo rápido.

Nesses carreiros dim pausado nalgum momento, esgotado com todo o bruído que achegou o mês. Olhar parrulos, as crias das galinholas, a garça, o minhato e as lavandeiras amarelas a acompanhar umha fugida polo Gaiás na que me acheguei aos bancos sombrizos com respecto, a levar, de jeito inconsciente, o passo lene de entrar num santuário. Procurei a sombra, olhar a erva como se nom houvesse pressões e sobrasse o tempo.

(Baixo esse manto decato-me de que as certezas que levo nom tomam a forma de grandes verdades a defender -fruito de revelacoes coma lóstregos, monumentos que adorar e sobre os que construir a vida-. Pola contra tenhem, principalmente, o pouso de se ter ido assentando aos poucos, sem causa nem data concreta, a formar um chão irregular e de flores relativas. Atopo aí a firmeza amável da terra feita de folhas descompostas, de restos de temporal, que o mesmo apoia do que fertiliza e que, nalgum tempo, permite se deitar e atopar um certo descanso).

À procura da calma en anacos pequenos, aprendo a amar a tristura mínima que achegam os dias anuvados de primavera, com as flores e as árvores em esplendor contra o céu gris, estantios e fora de lugar, como numha fotografia dum tempo já passado.

Nos sincronismos do mês aparecem no lixo, em dias consecutivos, móveis da minha infáncia, ainda presentes na casa dos meus pais. Um cabeceiro de cama e um andel testam o meu desprendimento daquela paisagem. Marca também o começo do mês o extraordinário de ter três cantes numha partida de tute, e a minha parelha o quarto, como um sinal de sei lá o quê.

O dia com Quintelas e Antelos, as breves visitas a Alejandra, o Salva, os Raposo em Lourido, o café com o Fram ou a continuidade com Luzia fam que nom haja tempo para a soidade. Fago por fixar nos dias encontros que achegárom luz, sempre breves de mais, como se desse jeito tivessem mais sentido, lembro-me que estivérom como um escudo contra tempos nos que nom os chego a perceber.

Tardo em ter um mínimo vagar para retomar Dr Who, mantenho a dieta noturna de Pratchett, descobro o leve prazer de inventar partidas em diálogo com o Chatgpt, que apenas achega ideias mas dá enchido ocos aleatórios de personagens e locais e permite desenvolver tramas sem tanto esforço, mais enfiadas.

Aos poucos, abril foi se infiltrando como o sol que penetra cada tarde um bocado mais até o fundo das estâncias. Lateral, o mês passou de fundo, a se desenvolver cumha enorme força continuada e silente, que só se advertiu de jeito retrospectivo nos breves momentos de paragem, ao verificar o desenvolvemento dumha primavera que sempre acaba por ser breve e pouco vivida, desta volta, sumida ademais no cansaço e as vagas de tristuras que nos atacárom. Há algo no final de abril que convida a ampliar leituras, viver com um vagar atento, pousar na calma dos demorados finais do dia, olhar para os céus. A impossibilidade de sucumbir a essas chamadas gera gumes que se desembrulham na noite e ranham o sono. Cansos mas agradecidos, com sonhos dum maio de vagar, fechamos o mês.

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Juntar os pontos

Forçadas pola emigraçom, mantenho relações intermitentes com gente muito achegada. Dalgum jeito configuram-se essas amizades em base a encontros pontuais, anuais, intermitentes, sei lá. Ficam marcadas na memória essas ocasiões especiais, acurtam as distâncias entre sim, marcam fitos. Lembro em especial umha visita há dous anos desde Holanda que se configurou numha semana de passeios por Bonaval, a comprovar as primeiras folhas e partilhar as vivências pandêmicas nuns dias nos que os nossos ánimos estavam baixos.

As figuras dessas amizades conformam-se em base a esses pontos de encontro, que atuam como furados numha brétema que semelha se depositasse dia a dia, a abrir momentos de luz e lembrar que nom estamos sozinhos e que o carinho continua cá dentro, armado na base sólida que de nos atopar há vinte e cinco ou trinta anos, e nos adotar mutuamente como companhia, mesmo que daquela as desorientações e os medos fossem outros.

Quiçais todas as relações sejam assim, com os pontos mais ou menos espaciados, e a diferença seja a consciência do extraordinário que acompanha os momentos com aquelas que se desenvolvem na distáncia.

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O trabalhoso tránsito de março

Março apresentava-se, como é habitual, como um período de transiçom, mais um espaço que percorrer às presas e sem muita opçom de olhar cara às beiras. A ameaça constante das tarefas por fazer, a sensaçom de que nom fica tempo dérom num começo marcado polo cansaço do final do constipado, os dous como a percorrer por inércia as horas e os trabalhos. Com o correr dos dias a vida complicou-se, transformou-se numha sucessom de dias saturados e de noites insones, alheios os praços e os ritmos aos movimentos próprios da época.

Como promesas das primeiras jornadas fazemos por nos aferrar a síntomas de melhora. A pele vai-se amanhando, anúnciam-se reconhecimentos ao trabalho, aparece ocasiom de casa. Aos poucos semelha que nos damos aperturas à alegria. Apanhamos entradas para Caetano (a súa soa perspectiva achega um verniz à vida de alegria e excepcionalidade calma, um pisar erva, um sol). Pensamos em férias. Fazemos também o esforço por abrir janelas: mais passeios, mais gente, mais flexibilidade. Tentamos acordar, mesmo no meio desta época tam restringida polas obrigas, dum tempo no que estivemos presos num segundo plano.

Polo meio, aprece A CASA. A possibilidade dum fogar quase sonhado ocupa a cabeça inteira. De jeito insistente reclama visibilizarmos todas as opções, explorarmos mentalmente cada recuncho, passarmos todos os medos (o da friagem, o económico, o do fracasso, o do ilhamento). Logo vem a assunçom do edifício. Conceber a casa desde cada recanto, sonhar-se nela e ver-lhe os problemas, assimilar a sua existência e a sua potencial realidade nas nossas vidas. A certa altura, também isso se mitiga, fai-se concreto, integra-se e a questão fica na incerteza das ofertas, de completar o negócio, de cada passo a dar. As dúvidas legais, as incertezas económicas, as crebas de confiança, as presas constantes. Ainda dá para seguir o carrousel com as dúvidas urbanísticas, reviravoltas cum enorme potencial de virar tremendamente complexa a vida.

Enche dias que abombam no calendário, a deformar o tempo na sua gravidade, a gerar curvas às que se tem que ajeitar o resto da vida. Na lua de março, resulta inevitável nom me decatar de como quadra com os dez anos da morte de hermínia, como também daquela acabava de me mudar a Sar, como foi também por esta altura que do ano que organizávamos os traslado a Compostela, que nos instalávamos a Melide. Desta volta atopamos no projeto tremenda energia de amizades e insuspeitados apoios familiares.

Em certo momento, o mês descarrila baixo o peso desse projeto. Tudo semelha ir mal, a arrasar uns sonhos de futuro que se resistem a desaparecer. O processo de compra mistura-se com tudo o demais que rolda a vida. Chega umha multa. Problemas dentais. Amigas doentes. Insónias. Ajudas. Bato marcas de nervosismo, sinto-me superado por todas as bandas. O sono voa nestas semanas. E, no entanto olho-me a pensar que ainda nom chego a desesperar como pensava que havia fazer, que há algo sólido por baixo que nom me afunde neste temporal que me abanea. Pergunto-me ainda como impactará em mim esta récua de trabalho e de emoções que na altura prometem ser estéreis, quê levarei aprendido deste março, para além de novos níveis no conhecimento de ilhamentos e de burocracia urbanística.

A perspectiva, o foco no futurível canda ao cansaço ponhem um filtro ao quotidiano, que fai perceber anuviadas as circunstâncias diárias. Vam-se revelando as diferentes figuras que assume a obsessom, as variantes da insónia, as formas de nos apertar na cama a aguardar o sono.

No meio do turbilhom, chega um estado de quase ataraxia e de equanimidade. Atira-se-lhe o peso a essa miragem de vida e consigo pousar no presente, a afiançar na realidade: nom me falta res para ser feliz, nom depende dessa casa o benestar. É umha opçom, nom umha saída a nada. Procuro manter a perspetiva no temporal que continua.

Em certos momentos aparece a calma que achega esse breve tempo de aldeia que é rendiçom. Deixar-se estar e nom procurar fazer nada, permitir que outros (família, vizinhos, circunstancias) tomem o controlo. Aceitar o ritmo de passeios, pequenos trabalhos, entretimentos e apenas estar, quase sempre acompanhados. Olhar o que há, passar as horas. Os espaços familiares revelam nessas jornadas o seu potencial calmante. A permanência da contorna, as conversas arredor do universo conhecido desde a infáncia, o ficar, dam em noites bem dormidas, em apanhar forças, em respirações de alívio fronte ao caos do quotidiano. Coma essas pausas, agradeço a aquele eu de há 25 anos que decidiu reservar Terry Pratchett para um futuro no que o puidesse precisar.

Assim fórom os arcos-da-velha do mês. Foi necessário olhar bem para os atopar.

Também outras mínimas pausas de vagar na fim do inverno na forma de pequenos passeios, num ioga partilhado, na leitura da Bechdel, tenhem umha particular calma. Aquela de expirar com alívio, de finalizar um esforço, de ter passado algo do pior. Umha sensaçom que se revela, como tudo na realidade, ilusória, mas abondo real no seu momento de existência. Podo parar e respirar, ainda que seja a tramos breves, e isso é verdade. Por momentos acado umha estranha sensação dual, a mistura da ansiedade e a percepçom de que este período ficará como uma anedota vital, como mais umha aventura sem tanta importância.

Em olhadas rápidas e cheias de sono, o mês achega céus puros que por algum motivo tenhem algo a ver com o tio Geno e com o Chico, luzes das que faziam as manhás de domingo em Noia. Quita-me esta iluminaçom a opçom de achar de menos, a achegar umha continuidade. Essoutras manhás sujas de março, anuvadas, conformam um espaço mental próprio, unificado ao longo dos anos num tempo conjunto de escolas, de nom ser horas extaordinárias no mau nem no bom, de nom chamar pola vida nem pola escuridade. Vivem-se como se estivessem no seu lugar certo e nós demorássemos nos últimos dias de inverno, sem necessidade de nada do que venha depois. Ponhem-lhes o contraponto os solpores únicos desta era, particularmente subtis, com esses azuis que som apenas deles e que se percebem como umha perda diária.


Como noutros anos por esta época, com o sol espreguiça-se a gente, e atopamo-nos por toda a parte, cruzam-se chamadas, falamos a agradecer o saber que seguimos por aí. As casuais Aída, Xiana, Nando e Noa, as visitas exprés do Carlos e do David, o passeio com Salva, o teatro por surpresa com a Alejandra. O convite do Tino a jantar, a dificuldade de, no meio de tudo, ver a Luzia A fim de semana de pausa com a gente de Ponte Vedra. O pequeno gosto de acolher o Merlim e a Cláudia na casa, mesmo sem os ver. (Os sincronismos multiplicam-se nestes dias arredor das luzes: Jogos, espetáculos, menções várias que giram arredor da ideia das tochas, dos lumes pequenos da noite, que se sentem mais acobilho do que resistência).

Fórom indo as sessões de rol, sempre breves e como a ficar na superfície do que poderiam ser. Ou os cantos de taberna de Baralha, que dérom para descobrir como acho em falta a distensom dos bares, o familiar ambiente de conexom e o calor desses jeitos de estar. (Situações que dam também para pensar em como há umha série de cousas às que sinto que fico às portas, com as que nom consigo conetar e deixar-me levar e viver com toda a intensidade que quereria).

Remato a um tempo duas convocatórias, a caneta, o mês e o caderno do trabalho. Tento fazer de tudo umha alegoria de mudança de ciclo, sei lá qual. Poida que o troco seja mais próprio de que das condições. Aparece como necessidade ineludível irmos cear fóra no 31, como a querer pôr-lhe o ramo a estes dias convulsos e brindar pola sua luz. Como se fosse um equador-equinoccio este que nos transitou com tanto trabalho.

Março é o temporal a deitar flores sobre os carros. Na incerteza adivinhada das primeiras andorinhas, apenas albiscadas num céu que nom lhes pertence, o mês constrói-se como umha transformaçom calada, feita dum silêncio de passaros e de folhas ao vento em céus que começam a repartir agarimo. Abrolha um passeio sem chaqueta, revela-se o brilho novo do serao a través dumha caneca. Há indícios desse novo mundo que se achega numhas folhas pequenas a se desenvolver de jeito acelerado dia a dia. E, no entanto, sem nos dizer nada, acolhe-nos e fai-nos sentir algo mais a gosto no mundo, a retirar malestares que desconheciamos. Embaixo da superfície em ebuliçom, março revelou-se, mália às alterações, como digno de confiança, ao jeito dum rascunho apresado e incerto dum jeito de levar a vida do que deveria aprender. Abro o coraçom a um período que se viu afogado por tanta cousa, que nom puidem amar como mereceria. Percebo-o como um pano de fundo, separado do que acontece, cheio de maravilha e de consistência, a armar as cousas no seu momento exato, a transcorrer discreto no seu próprio devir.

A certa altura estoura um tempo que se revela de jeito nítido como diferente nos seus serões enormes. Nada nos preparou, metidos no tobo, e a surpresa ante a primavera, mesmo desde o fundo deste buraco de questões pendentes, fai-se inevitável.

Adrienne Rich via Alison Bechdel

Como em outras tantas cousas da Bechdel, reconheço-me nos versos de Rich, nesse estudo da vida do que fala e que eu desenvolvo na escrita. Este jeito de estar na vida, a analisá-la desde ela mesma, a parar sempre um bocado e a olhar em momentos soltos, pensar que se conhece algo, tomar nota como única maneira na que se sabe estar.

No one ever told us we had to study our lives,
make of our lives a study, as if learning natural history
music, that we should begin
with the simple exercises first
and slowly go on trying
the hard ones, practicing till strength
and accuracy became one with the daring
to leap into transcendence, take the chance
of breaking down the wild arpeggio
or faulting the full sentence of the fugue.

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A compressom de Fevereiro

Fevereiro veu cheio na sua teórica brevidade. Houvo que o viver com força, alheios maiormente ao que acontecia na contorna. Pouco soubem do estarricamento dos seraos e dos gromos. Será que nom deu para muitos passeios (que os houvo). A explosom das camélias ou a lua imensa do começo a saír de volta de Ponte Vedra, ficárom como um pano de fundo para uns dias cheios de cousas achegadas.

Fevereiro nom foi tempo que se deixasse admirar como a bágoa de cristal dumha lámpada antiga. Fixo-se mais bem um terreio que pisar apressados, cada dia a se precipitar cara a algures, comprimido na sua brevidade, como forçados todos eles a acobilhar nas mesmas horas as jornadas que lhe faltam ao mês.

E ainda boa terra nos deixou, mesmo que houvo que se esforçar por fazer bom dela e lhe tirar proveito. Nom faltárom maos amigas para tornar este um tempo memorável, todo um catálogo de jeitos de lhe tirar partido à vida. As reflexões transcorrérom pois em pés de página, fragmentárias mas intensas, como lóstregos que deixam luz abonda para iluminar tempos por vir.

Arrincamos em Ponte Vedra, as jornadas sobre eólicos como mais um fito na luita acompanhárom encontros inesperados com o Mer, o Lourenço, o Luís. Umha visita à feira do disco amosou-me mais umha vez como fico por fóra do colecionismo, em que estranho jeito podo me achegar e agarimar essas peças do passado sem que me engulam. A vida social enlea-se gente trás gente por todas as semanas. Reencontro com o Fuco logo de anos, micro passeio com o David, jantar com Cris, enfrontar tudo o que tinha esquecido de Laça em vinte e cinco anos. Comprovar como ficou o sabor da carne, a bica, o cruzeiro sobre o poço. Sacar o abrigo, pô-lo de novo em momentos que nom se dam contado. Atopar o antigo perroflauta de há 30 anos feito um velhote como um quereria ser, e pensar que já estava eu cá quando ele andava de ocupa na aldeia.

Reencontrar-me com o Entroido, acompanhado na multidão disfarçada, todos membros do sol de fevereiro com as nossas histórias do momento. As maravilhas do mosteiro de Trandeiras a jeito de pequeno contacto lúdico com as ruínas. As visitas dos cunhados, o sobrinho a cair da cama, passeios, o trabalho intenso, umha segunda sessom do encontro sobre souvenirs. Aguete, o mirador de Monte Porreiro logo de anos, as perspetivas inéditas de Lourido. Mofa e Befa. Médicos leves. Expossiçom no CGAC, ceias recuperadas e abrir novos territórios de jogo. Um lote de cousas das importantes sucedem-se com pouca pausa, acompanhadas de breves instantes juntos nas compras, no descanso, no trabalho em paralelo na casa. Dá no final tudo num certo esgotamento, e um constipado dos que emprega o meu corpo para reclamar descanso.

Como um fito no tempo que há ficar na lembrança, aparecérom em fevereiro as primeiras pegadas dos eólicos na aldeia. No meio dos rastos de neve ergue-se a torre de mediçom. Olhamos fascinados o proceso de construçom, peça a peça, cum só operário lá cima, num dia e já. O prado passa a ser chao para a indústria. Na procura de compensaçom pola ferida, caminhamos polas beiras a rastejar umha medorra, olhamos as mudanças do chao, repassamos com a família as velhas lindes, como se existisse um passado, umha continuidade que nos puidessem guardar da iminente transformaçom.

Em momentos de pausa, comprovo como o sol já penetra até o fundo do salom. Olho Dr Who. Leio BDs de conforto. Nas noites descobro em Bradbury a falar do verám a mestria dum estilo no que ecoa Trapobana, que noutros tempos me havia facer rachar por dentro, enchido como um pexego que medra rápido de mais. Em Pratchett as maravilhas absurdas de percepções expandidas e comprimidas do tempo, entre as efêmeras que lembram os velhos tempos da mesma manhá e as árvores milenárias para quem as glaciações forom apenas um inverno e que vivem os dias como um contínuo de luzes intermitentes nos céus.

Tardo três semanas em atopar tempo de novo para me pôr com Barriga Verde, o panorama abafante que domina os primeiros meses do ano. Fago-o com prevaricaçom, como umha tarefa com o seus passos, a controlar os tempos e sem me deixar superar polo momento. Como outras tarefas a burocracia nova, a formaçom contínua que marcou as semanas. Na intensidade de nos pensar em anos por vir, perfilarmos as fantasias e as vidas que queremos, olhamos casas. Há umha certa insónia da de acordar cedo por vezes.

Nestes dias descobro como me desprendo de nostalgias. Podo lembrar tempos escolares, a sensaçom das escaleiras escuras marcadas polo arrecendo a lápis, livros, mochilas, sem que leve aparelhada dor nengumha. Foi e fica em mim, nom dói, como nom dói tempo nengum porque nom foi melhor ca este, porque deu aqui afinal. A tristura fica relegada às pessoas. Os mortos fam-se com toda a importância, as suas ausências afiadas cristalizações do tempo nom recuperável, do que nom puido ser, da falta da sua companha.

Nesse procesamento do passado, há ruínas que me semelham já estantias, como se a degradaçom nom estivesse a operar nelas de jeito contínuo, como se nom estivessem abandonadas e apenas fossem esssa parte particular da paisagem. Como se eu nom tivesse visto vivos esses espaços e nom indicassem com o seu deterioramento o meu próprio percurso. Afinal, quanto vive um edifício? Qual é a vida dum comércio , dum bar? Com o passo dos anos os aparentes fitos inamovíveis da paisagem quotidiana caim um detrás de outro e deixam de rabunhar a pele. Há ser bom sintoma que o presente importe mais e achegue abondo como para tirar peso desses passados.

Em paralelo, descobro cousas que permanecem idênticas a sim mesmas. A luz do sol dum domingo de manhã, tam diferente na cidade sem os carros e os ruídos do resto das jornadas. Penso agora que marcada inicialmente como única polo fato de que era o único dia no que a podia contemplar nessas horas próximas ao jantar, sem estar fechado nas aulas.

Os restos dum passeio de domingo pola tarde (um pacote de tabaco, mondas de mandarina) aparecem como um monumento a todos esses momentos com os velhos, cada um dos quais foi contendo nos seus limites de horas todas as anteriores ocasiões, a conseguir umha polifonia de ecos que por vezes (e só por vezes) conseguem soar entonados. Essas tardes com o seu tempo agre, como mastigado de mais até o ponto de náusea e repetição excessiva de falta de esperança, exigem esse movimento de passeio em desespero contido, como obriga de tentar viver como seja esse pouco tempo livre.

Mesmo no frio, o sol colhe força, a sua rotundidade racha o traço fino de janeiro, o encaixe de polas contra o céu pálido. Apetece abrir um bote de crema solar apenas polo arrecendo, por chantar essa bandeira no inverno, sem vingança, apenas para pontuar a existência dumha outra vida possível aqui ao carom.

Fevereiro passou intenso e fugaz. Ficam pendentes de ordenar e processar os seus dias acelerados e todo do que nos trougérom. Nom conto com que março deia a trégua necessária para o fazer, abondo seria que nos achegasse algumhas luzes como as que nos iluminárom esta temporada. E assim é que se vai vivendo.

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As costelas de janeiro

A luz de janeiro achega umha nitidez inédita às cousas, sem as embelecer, situa-as como o que som, outorga-lhes umha concreçom própria e pousa-as no seu lugar certo, sem as embrulhar em esperanças nem saudades. É o tempo do ano no que o mundo mais semelha estar no mesmo lugar ca nós, sem se perder em potencias nem em reclamos. Os dias aparecem como umha promessa de quotidianeidade e de momentos abertos. No entanto, essa mesma luz atraiçoa a esperança, turra por um cara ao exterior mas a um tempo inóspito, lufadas frias do norte, chuvas inesperadas.

O mês desenvolveu-se assim em base a todo tipo de pequenas alegrias, dessas que exigem atençom para se decatar. Fórom apenas os passos quotidianos os que trançárom tam apertados estes tempos, os que lhes dérom pulso e dotárom janeiro com a força que nos levou. Sem nos arrastar nos imprevistos nem nos dissolver em trabalhos, vivémos com a tensom justa das ondas, dos dias a medrar, do crescimento discreto do tudo que nos arrodeia. Deu janeiro para o abraçar forte e sentir-lhe as costelas firmes com as que conformou a realidade. Foi necessário faze-lo para que nom nos levasse com ele. E fomos quem de seguir essa dança intensa por solpores e chúvias e frios e jornadas inesperadas.

Começou janeiro entre as náuseas e a insónia do cansaço final das festas, carregado de chuvas pesadas. Aginha se verificou a mudança da luz, umha novidade que deu gana de o caminhar, de explorar o mundo que se foi desenvolvendo nesses dias, conformado polos gromos primeiros, as flores e os fruitos disto que chamam inverno. Veu um certo optimismo inevitável nesse passar folha, os horizontes a fazer por acolhedores na sua humildade, os céus a achegar um conforto singelo.


Como a nos recuperar da intensidade do Natal, da família e das visitas, apanhámos dias livres. Figémos precários planos que nom acabárom de saír bem. E, no entanto, aí estivo o excepcional do teatro, o caminho polo sul da cidade a redescobrir espaços e vistas, sempre a amosar vidas possíveis noutros horizontes. Fomos ao CGAC, a Biduído, recuperei rol, jogámos a dous, multiplicárom-se as conversas telefónicas, a presença alternada de Luzia, Tino, Alejandra ou Mer. Correr para ver gente em Ponte Vedra, o David de volta. A porta do garagem bateu no carro. Abordámos nesses momentos compras e recados, recolhémos, cozinhámos, artelhámos, deixámo-nos estar. Embarquei-me em tarefas que se desenvolvérom sem carga nem emoçom. No final, a Covid irrompeu de novo a nos obrigar a dias de pausa.

Dentro das estranhas possibilidades que se concretizárom em janeiro aparecérom os improváveis reencontros com Paula e com Lois, o jantar no fogar dos Zapata, um café com o Salva, a volta a derivar com Adela. Sumáromm-se os contrastes destes dias com os de há sete, quinze ou vinte anos sem deixar pousos de saudade. Reenganchei também com velhos interesses. Ao pouco de lembrar o SOPA, aparecérom chamados: um curso, umha deriva. Atopei ocos para limpar os óculos de antropólogo e pensar um bocado o mundo.


(Em diferentes passeios revisito panoramas de antiga desesperança nos passeios baixo céus grises. Caminho por ruas nas que moram os talheres de reparaçom de veículos, polos lugares onde ninguém vai, onde a terra arrastada pola chuva reivindica o asfalto. Lugares semelhantes a outros que já deixárom pegada tantas vezes que possuem oagarimo próprio das visitas a Vigo na primeira infáncia, a noite a nos apanhar no caminho, os edifícios dos 70 a aparecer como moles ameaçantes onda a estrada, a companha da família no carro e no destino. Nom fam mal. No meio disso atopo as loairas, os recunchos de sol, as vistas incríveis, os lugares próximos que dam para se explorar.)

Mergulhado na chúvia, no frio e na luz cristaliza o devir cotiám num jeito de vida que nom carece de arestas. Como se janeiro fosse em sim mesmo um ensaio, umha miniatura de tempos na que é possível jogar além dos limites, onde as possibilidades florecem de jeito inesperado como o briom e as humidades que se multiplicam de jeito explossivo numha sua particular primavera. No começo, apenas numha semana, os liques fam-se donos das polas espidas, a paisagem muda a inverno de jeito cronometrado.

Janeiro configura-se em certo jeito como uma chaira na que as possibilidades estám abertas. Nom compre aguardar nada, tudo aprece claro e pronto para viver. As evocações do tempo venhem carregadas com a luz própria desta época e as realizações desse potencial. Som apostas que se desenvolvem sem a ánsia de setembro, que apenas aparecem e se executam sem esforço no frio. Nom compre refugio em janeiro, olhamos o mundo ao seu mesmo nível, quiçais por o atopar despossuído das urgências e dos fatos de vida doutras épocas.

Desse jeito os dias enchem-se a níveis inéditos, e no entanto nom pesam as citas nem o trabalho. Fica um bocado de esforço nesse estranho saír fora de horas, no rachar os hábitos de descanso e pausas. Compre se manter minimamente alerta, sem se deixar dominar por ansiedades anticipatórias, nem pola sensaçom de que nom vai chegar o tempo. Como se fosse possível em janeiro viver apenas com o esforço concreto de cada momento, sem a carga que por anos me mantivo canso, despejado o ruído de fundo que marcava ritmos mais demorados para a vida.

Aguardo ter aprendido deste janeiro longo, do seu jogo de luzes e pauses, do seu jeito de caminho enlamado, da força exata com que de devém e contribui a dar forma à vida.

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A extensom de Dezembro

Dezembro desenvolveu-se alongado, como esticado um bocado à força, esgotador de jeitos diferentes aos que aguardava, mais carregado de chuvas, de tristuras e de sustos. Afinal, nom tivo o mês culpa nengumha, nem o sol no seu percurso marcado. Foi a vida, que acontece quando lhe quadra e pousa nos dias das maneiras mais aleatórias, a deixar umhas pegadas que apenas podemos distinguir.

Dezembro correu descomposto em mil facetas mal relacionadas. Atrapado em diferentes chamados de amizades, de trabalhos, de falta de sono, é em ocos soltos que aparecem o dó, a contemplaçom, a percepçom da maravilha que noutro tempo havia chamar vida. Entre umha respiraçom e outra consego focar a rua e percebir a sua beleza espida, sem tudo o que anda pola cabeça. Atopo mínimos momentos de respiro enquanto caminho a algum dever ou aguardo no dentista. Anotações apressadas e difíceis de casar feitas no telemóvel dam conta dos momentos que forom fazendo dias, e deixam fora outras tantas cousas que enchérom estes tempos.

Começa o mês triste. Nalgumhas jornadas, a mágoa limpa e cortante pola perda de Pepito semelha fundir-se com essoutra mais funda, a angústia conformada por dias frios, ruínas por toda a parte, cansaço e sensaçom de ter pouca saída, a repetir aquele rito de escuitar o Álbum Branco, próprio de invernos escuros. A cruzar esses velhos que já nunca poderám ser o meu tio, decato-me de que na sua ausência ficamos soltos, cada um numha soidade que se sente nova fronte à comum companha que ele construia a consciência.

Esses primeiros dias vinhérom marcados polos momentos nos que as bágoas acodiam aos olhos. Mas nunca perdim de vista que percorrer Dezembro estivo ao meu alcance, justo aí diante do pé. O sol tépedo mantivo ainda a esperança acessa.

No contraste apareceu o alívio dum dia de vagar, um serám a percorrer o Sar por Bertamiráns, os bandos de pica-folhas acelerados a outorgar-lhe à vista um dinamismo que nom se aguardava desta época. Numha expossiçom sobre arte e paisagem percorrer as sensações subtis que gera a criaçom contemporánea e que achegam sempre novas luzes de esguelho à minha própria reflexom sobre o jeito no que me relaciono com a contorna.

Logo foi voltar a Alhariz a caminhar as ruas já quase conhecidas e ainda surpreendentes, como um pequeno labirinto. O impacto das miniaturas de madeira deixa mais umha nova pegada nas voltas que dou arredor desses encontros com o mundo, fam-me pensar na possibilidade afastada de incorporar à vida esse tipo de cousas pequenas.


Celanova de volta, parar com vagar polo mosteiro, observar esse estranho urbanismo, pensar como sempre nas possibilidades doutras vidas. As vistas de Castromao e conversas demoradas, jantares que tenhem algo de ritos necessários para cumprir com o tempo. No mesmo caminho, o cozido em Lalim, os encontros acelerados em Ponte Vedra, de visita em visita. Pausas breves no sofá, a mínima manife contra os eólicos no frio de Becerreá, os jogos com o Breixo. A leitura de Saramago. Passeios pequenos e procurar ocos de outono.


As alegrias dos encontros e dos tempos cativos a dous foi-se mesturando com esse certo agóbio de montes de tarefas pendentes. Embora livre da tensom engadida de que deveria estar noutra parte a me refazer e nom a elaborar memórias, esses trabalhos sumárom-se ao frio e à chúvia como pano de fundo destes tempos.

A certa altura sucumbo à pressom. Fecho-me mais na casa colado ao trabalho, agobiado por rematar e fazer bem. Umha vez que se investiu certa quantidade de esforço, já custa pensar que tanto tem que nom saia, que nom vaia bem, que se poida perder. Tenho a sensaçom de que com esse peso sentem-se mais lenes essas sensações comuns que envolvem os movimentos mais diários. Sinto que me escapam e que deveria estar mais atento, que nom é para tanto o que me retem a atençom e um bocado o sono: O agarimo da água quente nas maos a lavar a louça. O agocho que proporciona a coreografia repetida de recolher a mesa e olhar as nuvens das três da tarde, já a anunciar o serao, como umha parte de fogar que nos acompanha de casa em casa.

Enquanto a chuva semelha me respeitar, e caim os mais fortes trebões quando estou na casa, constitue-se a impressom de ter passado um temporal dalgum tipo. As polas e as folhas caídas, as poças, os regatos de água ainda a correr, achegam a sensaçom de se ter salvado, ter saído de lugares mais fechados do que os que conformam estes dias de luz lene.


Dalgum jeito mudamos horizontes, perdemos planos, começamos a nos mover em novas perspectivas nas que há um certo alívio e, ao tempo, umha necessidade de pensar a meio praço. Por dias, dezembro achega umha trégua que permite curar e mudar, erguer a vista do chao, menos carregados.

Com todas essas incertidumes, este tempo nom foi escuro. Poderia ficar na memória por essa luz de arco-da-velha, de ruas enchoupadas, as folhas apegadas à pedra, e o sol a se reivindicar no meio das nuvens. Sempre foi dia às seis da tarde e eu decatei-me, como a comprovar que já nom olho a escuridade na maneira doutros tempos.

O particular reencontro co a gente de Holanda, marcado por nos ter visto há poucos meses e por umha estadia longa, achega umha sensaçom de normalidade, de se poder ver com vagar e nom restringir a conversa a esse se pôr ao dia rapidamente que tanto quadra nesta época. A conversa flúe e comprova-se como continua sintonia e as reflexões comuns, como poderia ser possível esse combinar sem planificar, ao jeito doutros tempos.

Fronte a essa normalidade, abundárom nestes dias os encontros extraordinários. A juntança multitudinária em Ponte Vedra. Compras e passeios. O estranho e alongado reencontro com os irmaos, logo de dous anos sem quadrarmos juntos.

Por esses recantos de jerseis grosos e luzes lenes, de infusões e de pousos, albisco polo recanto da minha visom saturada que poderia estar comodo neste mês, que me é possível atopar nele a mesma esperança que aboia nos primeiros tempos do inverno. Afinal os dias e os agóbios das festas passam enquanto estamos a outras cousas mais importantes que nom chegamos a saber quais som. Quiçais umha mestura entre olhar as nuvens e burocracias.

Em insônias separadas, por duas noites, em casas diferentes, escuito umha pinga a bater no teito, clara e rítmica coma un relógio. Nada dá para pensar que fosse real, e lembro os golpes na porta que alguém da minha família sente depois dos enterros.

O mês transcorreu enfim longo, atrapados os seus estremos por mágoas diferentes. Dumha bamda a tristura cristalina da morte de Pepito. Da outra, a ánguria peçonhosa e mesta que deixa a crise forte dum amigo. A pegada é de sensações de impotência, a fragilidade na que rapidamente cai a vida, as separações forçadas e, mais umha vez, a promessa de tempos que nom vam ser melhores. É o que toca por idade também.

Nesses contrastes, dezembro lembrou-me que nunca as escuridades som completas. Há quem recupera aços, há quem continuamos esforços sem termos muito claro o horizonte. Remata o mês, do ano sei lá. Agarimo os mortos, pergunto-me como nos deixará a sua acumulaçom crescente nas costas, como seremos com os problemas a medrar. E por vezes loze um sol que nom preciso que me achegue consolo.

(E neste 28 de dezembro fez 20 anos o primeiro post de Trapobana).

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A inércia rota de novembro

Novembro desenvolveu-se maiormente sem pulso próprio, como a transcorrer na inércia do impulso dum outubro enorme de mais para se conter em apenas os seus dias. Arrincou sonolento, arrinconado ante a magnitude do mês anterior, a deixar sentir um certo cansaço de tanto tempo a se arrastar detrás dos deveres, o troco de hora, os ajustes na vida para acompanhar o intenso trabalho que marcou essa temporada. Desse jeito, novembro desenvolveu-se ao seu ritmo, com menos pressom, acompanhado dumha pequena tristura, num ritmo que nom me preocupei em medir nem em registar.

Umha visita inédita a cas Quintela já no começo, a partida ao Ano Tranquilo, os passeios acelerados polo Sar semelhavam prometer um tempo de atividade intensa desde os primeiros dias. E com certeza o mês encheu-se de gente. Os reencontros com o Salva e com Anna e a multiplicaçom de cafés nas manhás cubrírom as contínuas dificuldades para combinar. Mas no fundo foi a chuva a que marcou a maior parte do tempo.

Saír pola manhá da casa com a sensaçom de que passara um temporal quando nom estava a olhar mesturou-se com o estranho acaso de dar esquivado todos os trebões que caírom. Apenas me molhei em novembro, como se a chuva só estivesse como um recordatório da época. A multiplicaçom de arcos-da-velha semelhavam insistir na vida que continuava polos céus.


E, no entanto, sem confiar nessa minha sorte, empurrado também polo estranho semi-constipado que me ameaçou, deixei-me ir no ficar na casa, arrumar, afiançar cozinhas inéditas a desenvolver um ritmo marcado polo trabalho e o fogar. Ler a Dragonlance apareceu como um síntoma de certa fartura mental, focada a atençom no trabalho e nos cuidados pequenos. Continuou também a época de cuidados. Dentista, fisioterapia, escova de dentes elétrica, exercícios na casa que se somam ao complexo ritual diário de ir para a cama. Uns dias sem Belém contribuírom a deixar o foco no pequeno e quotidiano. Faltou quiçais umha ruptura mais marcada com o estado de emergência eólica que acabou logo da primeira semana.

Havia gana de provar o outono, e aparecérom pequenas ocasiões polo Gafos adiante, a procurar cogumelos pola aldeia, a percorrer Malhou, até nos passeios de compras por Compostela, onde reconhecim a luz macia destes tempos. Aferrei-me sem muita gana a esses pequenos momentos pequenos no exterior, à força do agromar das setas com o que tem de esperança.

Cara à última fim de semana, ajudar a fazer chouriços e decatar-me da sorte de que as cousas que me tiram o sono som questões de fundo, agradecer as oportunidades que tenho de poder pensar e olhar e escrever sobre os tempos e a vida e nom ficar prendido nas misérias diárias, com comida, luz, trabalho e carinho.

Vinhérom esses dias cumha pequena alegria pouco clara, jogos com o sobrinho, atopar-se a fazer air guitar na cozinha, como a gosto com as cousas como estavam. A possibilidade de que esse impulso vinhesse do ritmo do trabalho e a apertura de novos projetos com Barriga Verde fai-me pensar com precauçom sobre as minhas dependências desses estímulos para achegar um sentido e umha transcendência que, no entanto, semelha cada vez menos necessária.

Os últimos dias transcorrem com a ameaça difusa dum dezembro que promete se consumir num instante entre festas e ponte, nas mil visitas que configurarám umha agenda sem controlo, umha tempestade de reencontros e carinho para a que nom tenho claro se estou preparado.

No dia 29, morre Pepito, fora de tempo, logo de apenas umha semana de preocupaçom intensa. Como é habitual, a morte achega umha especial densidade aos movimentos quotidianos. Cómpre vencer essa pequena resistência para continuar com os pequenos atos necessários para a supervivência e viver como se nom tivesse acontecido. Nom há jeito de a situar numha possiçom concreta. Damo-nos momentos para chorar, apertamos a mandíbula até que dói a cabeça. Sonhamos com ele. Aferramo-nos aos momentos ritualizados para desafogar e tentarmos concentrar lá essa enormidade inconcebível.

Nom dá ainda para pensar em como vai ser a sua ausência. Apenas se albisca a soidade na que nos deixa, as cousas que marcharám com ele. Emerge na mágoa o agradecimento fundo que lhe tenho, a perda de nom lho ter sabido comunicar.

O seu falecimento basculha o mês cara estas fatídicas jornadas, acaba por lhe outorgar um peso que nom selhemava ter. Os dias anódinos, que se pensavam ressaca, passam a semelhar um tenso guardar ar para este final abrupto. No funeral, a igreja de Sam Martinho achega um outro tom de novembro. A escuridade a cair a noite na saída do cemitério reafirma a época. O outono fai-se pleno como tempo de Defuntos.

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Os dous outubros

Outubro fíxo-se múltiplo e enorme. A chúvia marcou umha fronteira funda nos jeitos dos dias, rachou a aparente corrente de continuidade com a que arrincou o mês. Aginha lhe outorgou um aspeto de confusom, de intensidade, de caos. E, no entanto, algo ficou dessa força de arraste própria deste tempo, marcada na sucessom programada de folhas a cair e dias a se acurtar.

Nos primeiros dias fíxo-se a inevitável a sensaçom de que o mundo espirava um alento contido. Dérom-se movimentos, recuperações, visitas, conversas que semelhavam querer resolver questões pendentes, movimentos da vida que por vezes resultavam um bocado histéricos. O trabalho adquiriu velocidade, com gente a chamar e ofertar histórias. Conseguim por fim o computador para trabalhar na casa. Umha juntança de curmaos avançou resoluções da herança de Hermínia, reorganizárom-se cousas. Botei uns dias sozinho na casa e apanhei o carro por surpresa. Umha extraordinária visita a Ourense, com um certo tom de encontro de danificados a se fazer companhia, deu para cumprir o velho rito de outono e se mergulhar nesse Alhariz cheio de madeiras antigas, para ver o Cadaval e passear Abrucinhos.

Logo do começo aginha freárom as tentativas sociais. Nom demos, ou preferímos nos reservar um bocado para nós, ou toucou repousar. Mesmo assim, com esse ritmo mais pausado, aparecérom aginha ocos, recordatórios de que a gente anda por aí. O teatro com Anna, umha caneca solta em Área Central. Luzia, Alejandra, Tino a pontuar os dias. Umha última visita a Ponte Vedra deixou tempos longos com as velhas amizades, achegou-me a habitual recarga das baterias da saudade nesse confronto com umha vida e um lugar que nom som enteiramente os meus.

Foi outubro um tempo da ilusom de fazer agasalhos múltiplos, de andar de comboios e de autocarros como havia muito tempo. Mantivo-se o tom de outono na gana de escapar um bocado, de ampliar horizontes e parar e jantar. E deu para o Sam Froilao, para um jantar pouco pensado na chúvia de Compostela, para a escapada imprevista à Corunha, o ballet, as exposições.

Nos seus primeiros tempos, outubro surpreendeu polo jeito em que transcorreu por um caminho quase marcado no qual, no entanto, a paisagem tinha algo estranho. Nom se correspondia totalmente com o que devia ser, alterada por um sol que nom acabamos de crer. Desenvolveu-se aí o estranho arrecendo dos dias quentes de outono onde seca o orvalho da noite, onde a descomposiçom que se intui no ar a dar-lhe o seu retrogosto ao tempo. Nessas afastadas semanas, os cuidados quotidianos figérom-se com o tempo, marcados polas horas de trabalhos cervicais. Cumpriu planificar os passeios (pequenos mergulhos rápidos nas folhas secas, na terra molhada), dosificar energias, ajustar o passo ao ritmo que impôs o mês.

A chúvia apareceu pola metade do mês a dividir o tempo, a pôr um bocado as cousas mais no seu lugar e a autenticar os arrecendos. Do mesmo jeito, situou-nos a nós mais no momento, a aliviar essa mínima ansiedade que no fundo produzia o nos saber fóra de lugar, num outubro incomum, num tempo que nom nos correspondia e no qual o inimaginável podia apousentar. Com as chúvias voltárom também dores reumáticas e, segundo avançou o mês, numha vaga de doenças e picos de ansiedades na contorna. Nessas tormentas desenvolvia-se o mínimo medo de ter que integrar isso tudo nos dias, a sensaçom de que passará a ser habitual. Compre deixar de dar por garantida, como figemos muitos anos, a saúde, a continuidade na paisagem de todos os elementos. De jeito estranho, respectárom-me os trebões, deixárom ir e vir e caminhar por onde quigem. Numha noite, acordei e comprovei como os lóstregos caiam com a regularidade dum metrónomo, em silêncio, no meio dumha treboada como nom lembro. Dalgum jeito neste mês soubem andar polo meio deles.

Quase com a chúvia, chegárom também os eólicos a invadir os nossos dias, do mesmo jeito que invadem o país. Tornou-se aí outubro um tempo de insónias, dores e incertezas longas, e ainda mais cuidados. Afinal, entre cursos, eólicos e tarefas, vimo-nos pouco mália ao tempo na casa, e nem tam mal. A convivência de outubro realizou-se em anacos no meio do estado de guerra. E aí tirei ocos extraordinários para pequenas cousas e gentes. Porque resulta que já nom é necessário reservarmo-nos espaços de parelha coma antes, nem pôr-nos sempre por diante do resto como se o tempo juntos fosse sempre escasso. Nessa solidificaçom, arrinconados pola urgência da luita, os poucos sonhos a futuro pendentes semelham começar a perder a responsabilidade de nos amanhar a vida. Semelha possível seguirmos sem eles. Nesse esnaquiçamento abre-se o foco e apresentam-se opções sem ambiçom, outras possibilidades, umha aceitaçom de viver na imprevisibilidade e sem planos mestres.

Na recámara, fóra do olhar consciente, continua a sensaçom de ter pendente mais vagar para olhar o mundo e debulhar o que me provoca. Do mesmo jeito que se acumulárom nozes por abrir, castanhas por pelar, cenouras e outras comidas por processar de cara ao inverno, tenho também pendente identificar os componhentes exatos que me ligam, agora sem o seus fios mais agudos, às paisagens británicas, às folhas caídas, aos telhados, ao briom das árvores, aos sons do ukelele, às canções de Beirut, às relíquias várias, a tudo o que evoca o rol, às BDs de Carl Barks, à cerveja, à carne, ao sol. Mesmo nas incertezas deste olhar novo, surpreendo-me ao atopar um acougo firme e um certo entusiasmo que me comove em Sandman, Zerocalcare ou Peeters. Os circuítos polos que integro essas cousas multiplicam-se, as categorias do mundo resultam mais variadas e neste tempo apresenta-se mais complicado reconhecer e classificar sensações que, de me guiar polo inveterado costume, haviam ser parte apenas dumha dor quase única e funda, construída nas sombras com as que o sol abandona os vales no final do outono.

Fum quem de amar este outubro confuso e tam completo, que deu um vagar estranho mália a certo cansaço final. O horizonte de novembro, por vez primeira em muito tempo, aparece despojado do seu signo de invernia. Quiçais pola esperança de que fique menos constringido polas obrigas urgentes, quiçais por umha pequena consciência de que compre repousar e que para isso todo o tempo é bem vindo. Chego a ele com a pele branda logo de tirar mais peças da velha armadura. Livre das ameaças habituais, vém no seu tempo, um molho de dias nos que nós havemos de nos desenvolver.

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O universo gasto


Mesmo sem a intensidade doutros tempos, prende-me a vista nas cousas desgastadas, na degradaçom que se desenvolve arredor.

Esse universo gasto agarima, conta umha história, achega companhia, acorda a familiaridade de ter em comum uns anos com os objetos e seres que o conformam. Som os seus constituíntes elementos que passam a fazer parte da nossa vida, que incorporamos à paisagem própria e, polo tempo partilhado, outorgam-nos o direito a considerá-los um bocado nossos. No deteriorado habita particularmente cómoda a empatia pola fatiga com que se desenvolve essa estadia no mundo.

A irmandade de ter partilhado umhas voltas ao sol, ou de as ter botado com os nossos velhos, fai do caído testemunha e continuidade do passado. A pintura gasta, a madeira comida, a pedra puída, o briom dos muros narram relatos de resistências. Apontam a possibilidade de permanecer, de perdurarmos também em silêncio, de atopar algum jeito de paz nesse apousentamento, a nos integrar no abandono e ceder o mando a um acaso que supomos pacífico e natural, desenvolvido ao ritmo das chuvas, dos deslocamentos que gera o vento, do roer dos insetos, da química da descompossiçom silandeira, do se queimar mainamente ao sol.

Como se essa degradaçom da superficie amosasse um interior oculto, deixasse mais perto a verdade, as cousas colhem mais peso, assentam na realidade com o pouso do pó, os lixos da água, as ervas que medram nas mínimas fendas, a erosom, as areias que se acumulam a rachar as linhas puras traçadas nos planos cumha vida que se gera enriquece a vontade originária com a alegria morna do caos e da decadência. O gasto promete contos, configura-se como um acobilho fecundo para vidas pequenas que a ninguém importam.

Na identificaçom com esse kippel adquirem também um novo sentido as cicatrizes, as tatuagens, os remendos e doenças crónicas que me acompanham. Achegam-me às plantas ventureiras, às folhas de há vários outonos que resistem onda a porta dumha garagem, à lata de cerveja baleira agochada na fenda do muro de pedra seca, testemunho dumha tarde única, que alguém deixou como marca tentativa e inconsciente de permanecer naquele momento.

A desapariçom do peso das reliquias, a perda do seu gume, dá para perceber novos matizes nesse mundo, abraçá-las de maneiras diferentes, acolher-lhes um agarimo mais complexo.

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Melodia de setembro

Setembro definiu-se na sua primeira metade. Este post ficou escrito maiormente na altura do dia dez, a definir os riscos claros dos dias que estavam por ser. E acertou.

Setembro alonga-se ao seu jeito. Tal e como veu este ano, nom correspondeu com a inquedança prevista nos calendários chineses, encheu-se de acubilhos desde os que semelha singelo repassar e gozar a vida quedamente. O mês fai-se o seu próprio tempo, nem outono nem verao, nem ledícia nem só tristura. Semelhasse que fosse possível aprender dele o jeito de nos demorar, de prolongar as semanas a cavalo da constante transiçom que é. Nesse próprio tempo de setembro atopamo-nos abraçados mais no presente do que no resto do ano.


O mês arrincou no alto, no meio da viagem a Bruxelas, cheio de companhias, de horas tolas e de pouco dormir. O primeiro dia marcou a fronteira entre os stresses e os deveres e os tempos de parar um bocado e olhar. A enormidade de outro mundo do paço de justiça, de novo a convidar o sonho, semelhou um monumento aos próprios dias deste mês, que se desembrulhárom a amosar um tamanho e umha lentura maior da que se lhes poderia supor.

Lá as espreguiçadeiras na rua. O dia no museu de história natural. As pausas no parque. O acobilho em cas Giráldez e partilhar essa quotidianidade diferente, a seguir os ritmos das crianças. O reencontro, as celebrações pequenas, jantar no jardim, dançar no salom, sentir-se cuidados. Como todas as viagens e convivências, a visita permitiu imaginar outras vidas, as possibilidades que achegam as casas. Voltámos com notas de cousas que modificar, receitas, horas, rotinas, ócios, possíveis adquisições, inevitavelmente um bocado transformados.

Depois o tempo desenvolveu-se num se deixar ir por trilhos relativamente confortáveis, os rios de agosto unificados numha rotina de carinhos lenes e momentos breves partilhados. Os planos já marcados para o descanso nas fins de semana, o retorno à rotina facilitárom esse seguir os dias segundo o previsto, ao ritmo que venhem.

Quiçais pola energia acumulada do sol, polo medo ao inverno, pola gana que fomos fazendo na pandemia, neste mês lançamos fios, tecemos redes para o outono ao jeito das aranhas, com especial intensidade. Toda a gente dá sinais, quer combinar. Tentamos achegar-nos, mudar hábitos, fazer-nos mais presentes e mais próximos. Enchem-se os dias de promessas dumha outra vida com tanta gente que temos abandonada. Custa organizar o calendário, escolher e artelhar, em sabendo que muitas dessas promessas ham-se resolver de jeitos desiguais e nom todas ham dar em bem. Mas nom se pode resistir esse chamado à semente, a se amarrar de volta às amizades, a provar novos jeitos de estar no mundo, mais partilhados.

Multiplicárom-se assim os encontros pequenos. Ver umha expossiçom em Compostela e outra em Pontevedra, algum passeio breve no final da tarde, umhas horas deitados em Bonaval, acompanhar as compras do começo de curso de Comba, café com Tino e Bibi, umhas canecas espontáneas e um chá com bolo, Luzia a se manter como um fito periódico nas semanas. Alejandra, Anna, umha partida rápida, o mínimo contacto com o Fram, o concerto de De Vacas e a visita longamente demorada a Briom. A beleza das luzes no campo da festa. Umha fugida em solitário a visitar os lugares polos que passeio no inverno. Umha ceia em Ponte Vedra, como promessa doutros jeitos de estarmos lá. Agarimos que fam mais agradável a vida. Todas elas companhias extraordinárias, como ainda precárias, logo de tanto tempo.

Houvo também o voltar a Noia a se atopar arroupados pola família extensa, repetir como um rito de amizade os velhos fitos que nos facilitam nos encontrar. A sessom vermú, o jantar, as piadas, as anédotas dos velhos como um recuncar num tempo eterno, a anovar as ligações. A sensaçom, que nom se corresponde exactamente com a realidade, de que antes iamos por defuntos e agora imos às festas. E as notícias de novos enterros a continuar a conta atrás daquele mundo.

A chuva do começo do mês marcou como um repentino outono que, no entanto, nom amolou. Esse pano da água a cair, a tentar fazer fronteira com os meses que passárom, voltou tudo mais familiar, aproximou as cousas no emocional, achegou-lhes um pouso de história que partilhamos com o mundo. Os dias de bom tempo que seguírom nom fórom o verao a resistir. As folhas secas em Bonaval, a escuridade a medrar e o sol a cair cara o sul nom marcárom nengumha hora de decadência. As cousas acontecem quando tenhem que acontecer, antes ou depois, e nesse ritmo flexível como as polas do bidueiro é que se atopa a seguridade firme da existência nesses dias que abaneam ao jeito dessas folhas pequenas que semelham sempre a piques de cair.

Descobri-me com gana de ir a aldeia, e deixei o concerto de Belle & Sebastian por partilhar com a Belém esse tempo. As fins de semana de visita familiar deixárom de ser um roubo aos nossos momentos juntos a ser um tempo compartido. As conversas nas viagens a atravessar o país, as risas a ouvir a rádio, as reflexões conjuntas. Fam-se-me essas visitas dias de soltar o leme, deixar que outras pessoas decidam o que fazer, olhar o horizonte desde as montanhas, procurar passaros pequenos e dedicar-lhe tempo ao detalhe das plantas e das árvores, descansar e deixar-me cuidar. Também de querer a família, escuitar e compreender, botar umha mao em tempos túrbidos. Jogar e explorar com o sobrinho, contemplar o jeito no que os castinheiros vam perdendo as folhas, mercar pam de Palas. Os tempos pausados que acompanham os horizontes amplos.

O sono semelhou organizar-se embaixo das mantas. Tocárom repassos médicos, postas a ponto pendentes, provar a deixar de lado moléstias que nem sabia até onde me determinavam. O autocuidado apareceu como algo que ocupa cada vez máis tempo. Umha acumulaçom de limpezas, pomadas, meditações, passeios e automassagens que ainda estou a tentar articular com o resto da vida.

O mês veu pontuado por momentos significativos no mais miúdo. Como umha manhá de sábado com a calma dos comboios, os arrecendos de fornos, pam e dozes polas ruas quase desertas polas que passeio cara à estaçom. O frescor do ar na sombra madura. O petricor dumha terra misteriosamente quente. A glicínia que floresce como em abril. A fileira das formigas a acompanhar os meus passos rua arriba. A maré imensa a afogar as ervas nas beiras do Lérez. O retorno breve ao velho lugar de poder da minha adolescência. Por vezes a sensaçom de se que se despregam ante mim espectáculos que ninguém mais olha. Um último e impossível círrio, na manhá do dia dez ratifica essa permeabilidade das estações, reforça o carácter singular de cada dia como umha engranagem das grandes mudanças, cada amanahecer a sustentar o sol num ángulo diferente, com outra lua, com diferentes graus de maturaçom ou gestaçom.

Cara ao final do mês, vinhérom também preocupações variadas. Crises arredor, saúdes dos velhos e antigas preocupações. Complicações inevitáveis na temporada e na idade. Nom dam os tempos para abraçar abondo. E o contraponto desses males tensiona as jornadas, achega um outro carácter aos momentos de paz e outorga-lhe ainda mais valor aos encontros.


Neste mês no que as nuvens se ponhem dramáticas, soa de fundo a questom de qual é o abraço concreto que me achega cada cousa que me conmove. Há ainda um tom afastado de violim, umha pergunta sussurrada em certos lugares e imagens, a reclamaçom de lhes dar umha história ou um sentido. Sem agóbios nem urgências, sinto a necessidade de explorar esses recantos, de ajustar as sintonias para me assentar. E matino mais umha vez na falta de certos tempos e espaços, nas pequenas transformações ainda pendentes na vida. E nas grandes que queremos abordar. Achegamo-nos ao outono pendentes das danificadas, a tentar repartir e receber abraços, ainda a procurar-lhe o tom à melodia já passada que foi setembro.

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No lugar abandonado

Velaqui estou. Olho no lixo que deitárom pessoas antes ca mim a pegada da tua história, signos de resistência épica ao baleiro (eles também objectos abandonados, nom reconhecidos, vencelhos com o que foi, perdidos após usados). A degradaçom é a cicatriz que deixa ter sido honrado polo sol e a intempérie. Acobilhas o caos capa por capa, contés o tempo coma um calendário velho. Compreendo-te. Vivim essa sensaçom de querer se abandonar e se deixar estar, simplesmente a observar o que os dias e a soidade fam com um.

Neste momento abraço-te a sentir que partilhamos um mesmo velho abandono, que temos em comum esse esquecimento primordial que nos marcou o carácter. Eu também fum deitado fora. Estou cá a me fazer também parte da tua história, ao tempo que te registro na memória, a percorrer os teus recantos anódinos e te incorporar ao meu conto, à cámara de maravilhas sempre perdidas com a que enfeito a cicatriz básica.

Com a minha presença reivindico-te como lugar abandonado, reclamo a tua beleza e o que ensinas da vida. É um jeito solidário de te salvar um bocadinho, como os abraços breves no meio da noite que nos devolvem existência durante o sono. Nom precisas ser outra cousa. Reconheço-te como o que es, também na tua inconcreçom, no infinito de possibilidades que albergas, no baleiro que te possui.

Velaí o encantamento que me tem definido durante décadas, mais um piar da saudade primigênia que vou descifrando. Ao interpretá-lo, perde a força, desliga-me dessa necessidade de responder ao teu apelo. Virei te ver, estimarei o teu feitio, continuarei a aprendizagem. Mas pola minha vontade, nom polo teu apelo.

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Os rios que surcárom agosto

Agosto foi um mês intenso e cheio de momentos extraordinários. Umha mestura entre quotidianias e anacos destacados, derivada de jeito inevitável de vir partido num tempo de trabalho e num tempo de férias. No entanto, a separaçom nom ficou sempre clara. Houvo dias nos que o trabalho, que arrincou cumha intensidade inédita, dava passo, em poucos metros e minutos, a encontros anuais desses que tanto abundam neste tempo. Visitas familiares combinárom-se com celebrações e excursões pouco habituais, com dormidas fóra do comum.

Mesmo as amizades habituais dérom em achegar momentos bem agarimosos, libertadas quiçais das premuras ou alimentadas polo sol. Assim foi o passeio com o Salva, na visita com Carmela, como também os percursos quase habituais com Belém ou algumha visita a Ponte Vedra, que se tingírom com o calor do verao. Desse jeito, as férias e os tempos configurárom-se em horas mais do que em dias de relax e agarimo, sempre marcados por obrigas mais ou menos cativas, preocupações várias.

Fóra das coleções de momentos, o mês veu determinado polo percorrido de rios que marcárom a paisagem. As águas do Ulha próximo de Ponte Vea, do Umia descoberto em Cuntis e do velho Tambre acolhérom os meus banhos. Mas de jeito paralelo a elas desenvolvérom-se polos dias correntes tortuosas de mágoas e preocupaçom, de carinhos e de vagar. Regos que atravessámos sem contar com eles do mesmo jeito que passámos nove vezes por cima do rio Lor de volta do Courel, a se fazer presentes em momentos concretos no meio do caminho. Fórom cursos que mudavam a sua profundidade, que se ocultavam em diferentes momentos e que anegavam tudo por vezes com o seu correspondente tom emocional. Surpreendérom em diferentes momentos a se manifestar em formas anovadas de contacto, nas chamadas longas, nas descobertas de férias, nos jantares. Mas também nas más novas, nas preocupações e nas tristuras arrastadas, nas urgências de vários tipos e nos problemas de saúde arredor.

Deixou-se notar no começo do mês umha vontade geral de se atopar e celebrar. Beber vinho com o jantar. Parolar a modo. A voda. O piquenique de reencontro en Bonaval e a comida multitudinária com a velha turma. A visita dos Barrigas Verdes. O inevitável churrasco e a conversa calma com o Mansamino. O aniversário da Núria. As piscinas de Baralha e de Roças, com as suas lavandeiras a se banhar. O percorrido pola área fluvial do Corgo, a escapada a Monforte com o Cabe e por fim o Paço de Tor, o percurso polo Courel arrassado que achegárom outros ares à visita familiar. Também em Ponte Vedra houvo vagar para praia, compras e ir fazendo jeitos de nos ver por lá. Cas Rapo, volta ao Grifom, algumha cerveja noturna, falar das cousas com tempo e olhar, com as crianças na piscina, um horizonte de novas possibilidades de nos atopar.

Também os anacos da calma de Penas Miúdas, redescobrir a evasom das partidas polo meio da semana. Jogar à normalidade nesse ver amizades aqui ao carom quasae a diário, se surpreender com as possibilidades que aparecem de que esses encontros se poidam fazer mais reais. O mês achegou também concertos impensados. Enfrontar o passado com Hombres G, como quem vai olhar um grupo de música infantil. Revisar as fúrias com Ilegales. Descobrir como me pode arrastar o ritmo dos Kings of the Beach. E a pouco mais passo por Camela, a seguir nessa curiosidade (outro rio de fundo) de como me vou relacionando com o mundo e as artes. A olhar os céus aparecéu umha parelha de gatafornelas, umha estrelinha riscada, as combinatórias inéditas de andorinhas, aviões (coma faiscas brancas a bater asas contra o céu azul da montanha) e círrios a partilhar ou alternar os mesmos céus.

Surgem como as fruitas deste tempo momentos de reencontro fundo, tempos reparadores com amizades velhas, que aparecem também do poder estar tempo a recriar as ligações. Há conversas pendentes que se executam, pequenos agarimos que jordem em dias polo demais anódinos. Repassamos épocas vividas juntos, com risas abondas e reflexões necessárias. Atopamos importantes concentrações de carinho nesse querer combinar, nas insistências por se ver e poder estar um bocado.

Mesmo com essa proliferaçom de pontos de contacto, aparecem nalguns reencontros breves essa mediçom das formas que tomam as amizades a distáncia. Conformam-se silêncios, temas tabu que nom se tocam ou passam por cima na pretendida posta ao dia. Queremos estar juntos e celebrar, deixar na parte da vida de cada dia os contratempos, como se fosse possível ainda a mesma alegria que partilhamos noutros tempos. Pretendemos estar sem nos ter que explicar, crermos que a ligaçom segue viva e fresca e que nem é necessário nos pôr ao dia, que nom passou o tempo entre nós, como se desse jeito se eliminasse a distância que nos separa, como se nom tivéssemos mudado e essas mudanças nom tivessem o potencial de nos voltar estranhos uns para outros, já nom nos compreender, chegar em certa altura a pesar mais do que os anos todos e os tempos fundacionais que vivemos em comum.

Os repassos rápidos ao ultimo meio ano de vida achegam a consciência do panorama de crises várias, preocupações e esforços nos que nos estamos a mover, e nem tam mal. O trabalho arrincou com intensidades inéditas, a desbotar a habitual calma de agosto. Ainda com rastos de Barriga Verde, custou chegar a esses dias em que, em aparência, já nom compria andar tam pendente de ajudas, redes e processos vários. Demo-nos momentos de sonhar noutras vidas, pensar em casas, fazer compras inéditas, programar a aterragem de setembro a espalhar polo calendário momentos de vagar.
Acompanhou boa parte das férias a sensaçom de ter que estar pendentes de cousas de mais. Dramas familiares, malestares na contorna que enchem a cabeça. As complicações de artelhar agendas. Por vezes retornárom as demandas do trabalho. Houvo um cansaço de noites cheias de sonhos estranhos e fragmentários, dormidas por partes que se deixárom sentir nos ánimos dalguns dias. Faltárom os mecanismos da calma quotidiana, afinados para ir levando os tempos.

Desde esta minha perspectiva sem relíquias, atopo me a olhar as beiras dos caminhos, as ribeiras dos rios, coma sempre mas dum jeito diferente, sem saber o que aguardar delas. Despojadas dos seus significados fundos, apelam-me de jeitos lenes e compactos que nom acabo de enquadrar. A sua beleza é a das arquiteturas complexas, dos papeis de parede arts&crafts. Falam em maravilha constante da história das forças que lhes dérom forma. Atopo a sua beleza, inspiram, reclamam atençom e monumentos de homenagem, mas nom me levam a outro lugar porque estamos ambos cá. Nom há respostas nas raízes que deixa descobertas a água porque nom chega a haver perguntas.

Nestes tempos percebo os rios como espaços proibidos, limites nos que a terra se amosa fendida e a conter nessa ferida a maravilha impossível da água. Irrealidades no meio do mundo, lindes de luz que marcam mistérios e até zonas proibidas. Vivo a possibilidade de entrar no rio como umha integraçom com o impossível, como se mergulhar fosse desaparecer na corrente com as folhas, os sapateiros e os cavalinhos do demo. O olhar de perto e apalpar as pedras, explorar os mundos que se agocham nas sombras das ribeiras, combinam-se com a calma que achega a dinámica perpétua do fluír da água, a sua garantia inconcevível de mudança e de permanência que, sem a dar compreendido de tudo, apenas se pode experimentar.

Como outro ruído de fundo, mais um rio, agosto tem o jeito de transiçom lenta para o outono. A friagem das noites, os dias mais breves, as amoras maduras e a erva seca, o jeito de encontros a jantar em interiores, a gana de cobertor e noites demoradas. A tristura soterrada que se fai presente nos tempos de silêncio, o acordar cedo de mais, nom venhem no entanto desse passar. Reconheço quiçais por vez primeira o que de outono tem agosto, livre por fim da carga que lhe impunha de ter que ser verao por cima de tudo. Configura-se deste jeito um mês lento e preguiceiro, no que a vida toda se deixa levar cansa dos trabalhos por medrar em julho. Os fruitos aparecem como sem esforço, ao jeito dumha evidente e inexorável evolução das florações, possivelmente num paralelismo com o nosso próprio vagar e recuperação. Nesse contexto, mesmo no meio das celebrações evitamos determinados excessos, mantemos silêncios e imos embora cedo, mesmo que as forças dessem de mais, como se nalguns dias tocasse esse certo recolhimento das horas da sesta.

O mês finaliza no meio dumha viagem. Por vez primeira em anos, apanhámos um aviom para a breve e estranha visita a Bruxelas. Sem muita mais expectativa que de ver se aparece a posse de observador, a ensonhaçom calma marcada polos contrastes na paisagem que caracteriza esse ir ao estrangeiro. Com a ideia de ver amizades como se fosse umha visita próxima, misturam-se, de jeito crescente, a gana por descobrir parques, ruas e jeitos de vida diferentes com a sensaçom de atopar as mesmas propostas turísticas de cada lugar, os mesmos pacotes de experiências processadas que nos assediam em Compostela. As primeiras jornadas da experiência deixam a estranha tenrura e a camaradagem dum grupo de excursom, as ligações feitas desde olhares partilhados e conversas com gente que aginha deixa de ser desconhecida. As sinapses estranhas do falar francês. E sim, esse jeito de estar fora sem ter mais que fazer do que olhar e estar. Cumpro anos numha jornada mais, a acompanhar os esforços de Belém e como parte da expediçom. Nom deu a vida para bailar nesse dia, mas a companhia foi excelente.

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O estrangeiro que habito

Anda Compostela estes dias mais umha vez tomada polas hordas de jovens-cristianos-nacionalistas-espanhóis. Eu sinto sento certo estupor nos contínuos comentários de pessoas que se sentem invadidas por esta maré rojigualda. Eu vivo-a apenas como umha expressom exacerbada dumha situaçom contínua. Levo anos a me sentir estrangeiro, nom apenas na cidade, mas no país inteiro. É certo que nom é umha sensaçom contínua nem uniforme, mas quiçais sim crescente.

Para mim nestes momentos concretos apenas se fai mais evidente que moramos numha contorna hostil, numha sociedade na que o fascismo está muito presente, num estado opressor que nom podo sentir como próprio. Caminho pola rua ameaçado por símbolos patrióticos portados por potenciais agressores, sei lá em quê nível de enajenaçom mental. Som um ser marcado para certas instáncias, em muitos lugares, em centos de ouvidos.

Mas a cousa nom é de agora. Em Compostela, cada vez som mais os locais e as zonas que sei que nom som para mim, que nom tenhem res para me oferecer ou que nom compensam o agóbio e o alheamento que geram. Locais uniformizados para o gosto foráneo, sem sabores peculiares, a se comunicar em línguas, músicas, códigos e simbologias que nom som as minhas, uniformizadas no manto turístico. O Franco é território vedado, os locais nos construímos tantas amizades, as casas de comidas de carácter local já nom som nossas. O Obradoiro completo é unicamente dessa massa. Cómpre partilhar em todo o momento os espaços e a vida com a gente que visita cidade, e fica um com a sensaçom de deixar de ser protagonista dessa vida quotidiana, com o sentimento de estar despraçado.

No entanto, nom é apenas cousa do turismo maciço. Em mim a sensaçom vém de velho. Desde a infáncia em Ponte Vedra vim a rua invadida por gente ruidosa era algo quotidiano, ao morar os meus pais enriba dum mar em plena zona de festa. Era o ter que pedir permisso para entrar na casa, esquivar as ruas ateigadas, conviver com as mijadas e os vómitos onda a porta e, nos tempos das festas da Peregrina, evitar os chorros de vinho. Ficaria-me daquela esse medo às multitudes que se sentem com força e com razom sem mais base do que o número.

Também partilhar os espaços de jogo coas pessoas aditas que inçavam a zona velha tirava a sensaçom de seguridade. Apareceu logo a pegada dos espaços proibidos para a minha classe (ou como tais os percebia). Os Casinos, os pubs e as discotecas com porteiros. E, como nom, os tempos nos que o meu aspeto e militáncias me acostumárom a levar sempre enriba o cartom de identidade, consciente de que me haviam parar, de que eu estava marcado.

Nom esqueço tampouco ter estado da outra banda. Abraçado polos grupos de amigos, caminhar com descaro polas ruas a cantar a grande volume. Fazer parte da ocupaçom estudantil de Compostela. Berrar polas noites. Amolar como jeito de se reafirmar. Também tenho feito Caminho, tenho chegado a Muxia como parte da enjurrada. Estivem em várias ocasiões a ocupar Ortigueira durante o festival. Fum parte das marés nacionalistas nos Dias da Pátria e noites próximas, a reclamar os espaços públicos para a minha própria comunidade. Também fum turista. Chego a compreender a exaltaçom e a alegria na que vive esta gente.

Dalgum jeito, levo comigo a consciência de estar a viver à contra, em lugares que dificilmente som os meus, que a miúdo possuem umha carga de incomodidade ou de potencial alheamento. As operadoras telefónicas que nom compreendem a minha língua. Camareiros que corrigem o café com leite ou simulam nom perceber o pedido. Olhares de repreensom ante a minha escrita. Médicas que, sem lhes perguntar res dim nom falar galego mas respeitá-lo muito mas sentem-se atacadas se se sugere que é o mesmo que o português. Gente que se pom à defensiva ante expressões que, pensam, ameaçam a sua identidade.

Afigem-me à tendência de manter um perfil baixo, aceitar como moléstia inevitável essa coexistência como quem aceita a chuva e o frio do lugar no que vive. Como as dores da artrite que chegam com as mudanças atmosféricas. Em certa medida, acaba um a passar a vida como quem caminha no verao a procurar a sombra. Evitam-se os lugares mais conflitivos, procura-se nom fazer proselitismo, deixam-se num segundo plano as ideias próprias ou nom se exprimem às claras em aras da convivência. Procura-se ser nom-conflitivo.

Isto levou também a outra reaçom, a de me abraçar aos espaços nos que um me sinto seguro e reconhecido. Onde podo falar a língua própria, empregar a retranca e reconhecer-me na companhia sem medo ao reproche ou às olhadas ofendidas. Lugares que sinto cada vez mais escassos, e que pola mesma cobram um valor cada vez mais grande, ainda que até o de agora nom era muito consciente. A Arca da Noe, o Festigal, Culturgal, determinados concertos, locais de hostalaria, encontros associativos onde podo respirar e nom me sinto marcado. Espaços nos que recriar, em pequeno, um mundo seguro.

A certa altura semelha que acabam por ser os espaços de resistência os que definem a minha pátria. Que é essa sensaçom de agressom constante a que delimita os termos e os lugares nos que quero morar. Pergunto-me como me tem feito essa condiçom, esse viver afeito a me sentir minoria. E ainda nom me queixo. Tenho trabalho, jantar e conforto. Mas como seria viver num lugar que sentir plenamente próprio? Seguramente nom estariamos a construir esses lugares pequenos de convivência, reservas para a alegria e a convivência. Mas nom importava provar.

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Julho fendido

Como era de ver, o mês veu fendido pola metade. As férias de duas semanas de retiro e repouso conformárom um tempo completamente diferente das promessas com que arrincava o mês.

O tempo arrincou forte, como livres já da pressom pandémica. O milagre dumha ceia em exterior, partilhar tempo com gente dessa que se vê pouco e um sempre pensa quanto bem faziam na vida mais perto. Umha multiplicaçom de achegamentos que se viu na visita de manhá do Xico, num jantar urgente na Ilha que dá em trebom de ideias, na tarde com Montse a explorar espaços inéditos, na fugida fugaz para encontrar gente na Feira de Artesania da Golada. Um gintonic na noite onda a praia.

Também o encontro com as primas de volta, Noia como um espaço que viver, já nom feito apenas para o olhar com saudade. Lá, descobro a tenrura de olhar o velho tio deitado na espreguiçadeira à sombra depois de jantar, a fazer quadro contra a erva. Sentir entom um grande agradecimento por ter estado aí todo este tempo a manter esse velho mundo, ele e os maiores todos intermitentes que se me constituírom focos de luz e de alegria, vias de conexom vivas com a origem. A gratitude mistura-se com a alegria por saber que podem descansar, por estarem bem cuidados e por se deixarem fazer, a desfrutar nas suas justas possibilidades e se retirar à sesta quando lhes é necessário. Agora estamos nós a construír outros pequenos vínculos, algo ritualizados mas também com a alegria cativa que tenhem os encontros periódicos e sempre extraordinários. Contrastar a vida com essa gente que fai parte da paisagem de há tempo mas que nom rematam de ser conhecidas nem familiares, esses pontos tangenciais que fam das conversas surpresas mínimas mas que sentam bem. Nalgum momento, no sol a cair de través contra o mantel na sobremesa, conforma-se na luz lene a realidade ineludível do verao, contida frágil nesse raio como o toque dumha folha no ombro.

Aginha aparecérom complicações. Doenças dos velhos próprios e alheios, saúdes arredor, virus e velutinas. A presença contínua do Titiriberia, com tardes de calor e trabalho intenso na casa, feito sem angústia, mas a reclamar o seu espaço. Escapadas no meio da semana, alguma tarde demorada a dous, deu também num certo cansaço por excesso de atividade, certa vertigem a aproveitar no possível os encontros mas tendo também que renunciar a alguns, em sabendo que as amizades seguimos todas aí, que nom há risco de malestar, a agradecer as chamadas, as conversas, os abraços.

Parou tudo pola metade. Retiramo-nos à casa, e depois à praia, num tempo no que nom se deixou de estar alerta. Os horários marcados do ócio, em movimentos pendulares como as marés (baixar à praia, subir, jantar, dormir, baixar à praia, subir cear, olhar algo, dormir), alternárom com reclamos de trabalho, lumes, preocupaçom. Ficárom os tempos de leitura de canhamaços como desconexom imperfeita e parcial, e a sempre incrivel ingravidez do snorkel a passar enormes bosques de algas mergulhadas, penedos coma coma montes, os desniveis da areia. Também o tempo passado a identificar a paisagem (O Xiabre, a Ilha, Ogrobe, Ria de Aldám, Costa da Vela, ao fundo o Galinheiro, diante Ons, o faro das Cies e detrás… Cabo Silheiro… ou até o Trega?). A visita a Sálvora, as vestas a aninhar embaixo da aira. Olhar as rochas semimergulhadas da onda o castro.

Entre um e outro momento, como a anunciar algo que nom se concretou, fórom-se sucedendo catástrofes e signos apocalípticos: o calor abafante, a maior treboada de todos os tempos, os lumes imparáveis, um bólido a atravessar a ria.

Acabou o mês em pequenas aventuras como ir à compra a lugares inéditos. Com a rapidíssima presença no festival como a olhar um mundo de atividade que se fai real logo de tanto trabalho a imagina-lo. A tristura, como outras vezes, levou-nos ao rio e percorremos umha mínima rota a descobrir mais umha praia fluvial no Pino. O silêncio nos céus, ainda que parcial (continuam por aqui em momentos pontuais do dia) gera a inevitável sensação de que os círrios levam com eles um anaco de nós quando vam embora, e que desse jeito ficamos desnortados de cara ao inverno, incompletos e mais calados.

No final do último dia, uns poucos fogos de artifício das festas de Ámio racham a noite cara ao norte. Desde galeria, ao pouco, olhamos os lumes do final das festas do Apóstolo, espetaculares como nunca tinha eu visto. E gosto do descaro com o que desde Amio lançam o desafio, a reclamar que continuam lá, com a sua pequena verbena, o seu encontro, essa luz na noite pola mesma banda na que, nestes tempos, sai o sol.

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Junho esquivo

Junho nom foi. Ou, cuando menos agochou-se muito. Ao abeiro da chuva e da Covid, os dias fórom um esforço por agromar e saír, nom chegárom a se desenvolver totalmente, nom atopárom um nome próprio nem se sumárom num espírito concreto. Nom conseguírom atopar o tom, e o tempo transcorreu desnortado em longas jornadas fechados na casa, momentos de melancolia e de se repassar polo baixo. Houvo, no entanto momentos que quase conseguírom ancorar essa deriva interior a umha existência mais concreta.

O mês arrincou com promessas. Umha boa partida a dous com o Xico, a descobrir o jeito no que os jedis aquecem o caldo. A manife do Dia do Meio como encontro e o piquenique multitunidário como havia bem tempo. Cafés com gente do trabalho como a tentarmos instaurar umha nova tradiçom, pequenas saídas e recuperar contactos.

A Covid apareceu como umha certa pausa que, no entanto, nom vivemos como umha frustraçom de planos ou umha interrupçom da primavera. O acompanhamento da chuva e os síntomas leves figérom desse tempo um olhar para dentro, e quadrou um foco no passado pouco coberto de nostalgia. As horas a olhar do Get Back, os Beatles como um espelho humano do tempo passado à deriva em juntanças eternas, a curiosidade de velho fam que ainda mantém o interesse por aprender um bocado mais, por os fazer abarcáveis para a cabeça e o sentimento.

Canda a eles, novas aventuras do Michael Portillo de volta pola costa inglesa, Stranger Things, Derry Girls, a nova dos Caçapantasmas… forom muitos os elementos que chamavam de mim para trás, numha perspetiva agradável mas sem pouso de saudade. Também houvo para leituras de antropologia, a se sentir um bocado de novo no alho, divulgaçom científica, Chimananda Ngozi, histórias à deriva das que só me enganchou O outeiro de Watership com a sua evocaçom exaustiva da paisagem. A releitura de Fábulas, a atpar ainda a surpresa e a solidez das histórias.

Em boa medida, junho transcorreu como lene, como a olhar desde uma lente sépia cheia de passado que nom magoa, mas que nos separa dum tempo mais vívido. Como se o mềs nom tivesse mais realidade e abondasse com contemplar pola janela as tardes longas, a profundidade das árvores enfronte quando as move o vento e trasluz um algo azul detrás ou de socato as pólas abrem ainda outro plano de folhas, e adquirem umha dimensom maior e suficiente para conter lá, nessa observação, o verão tudo. (E terá sido sempre assim e esses veraos imensos que pensava achar de menos construírom-se maiormente por observações minimas, polo tempo eterno de chegar à praia e olhar pola janela do carro em silêncio, polos seráns sozinho em Vila Garcia ou Mourente, a descobrir os tons do solpor).

Dalgum jeito, o período fechados na casa deixou um pouso de cansaço e de frustraçom, umha gana particular de botar horas baixo as árvores, de ficar fóra até o solpor. Mesmo sem a velha melancolia, nom dim escapado dos efeitos da chuva e do malestar. Multiplicárom-se as novas de complicações pola contorna. Saúdes, ánimos, cousas que se derrubam. Afetado por esse tempo, a me perguntar onde metim o entusiasmo, estremecem-me goços mais íntimos, desfruto as pequenas apertas que tanto abondam, as perspectivas que se formam desde a janela, os jogos de luzes, a incrível viagem de sol até os horizontes do Norte, a invasom dos círrios. Noutros contextos, sinto o corpo como um recipiente com agua num 70% que está calmo em repouso, é difícil de mover e logo apanha uma inercia própria cara à tristura que arrasta a um a cada passo e exige um particular cuidado e um esforço de compensação, de se centrar no ponto de equilíbrio para nom cair.

Imagino que certa altura junho nom se puido conter e reclamou um espaço que nom lhe demos conseguido. Veu-me ideia de mercar umha camisa de ursos, como umha proclama de querer alegria na vida, como a crer dalgum jeito nas promessas do verao de novo.

Recuperei o tempo de pausa que acompanha sempre o combóio numha visita fugaz a Ponte Vedra. A sensaçom de possibilidades infinitas que achegam as vistas longas da plataforma, o paradoxal mergulho no mundo que supom esse tempo de olhar segundo ditem as vias, a calma das aguardas longas. Ficar e ler na seguridade dos limites dos horários marcados, da mochila e do equipamento do livro e da carteira que fam possível ir a qualquer lugar. Essa certeza de que poderia dar volta e ir embora, ou apanhar o combóio na direção contrária, situam-me num fio de liberdade do que gosto, feito de silêncio e de soidade.

Houvo, isso sim, muita comunicaçom neste tempo. Estamos a conseguir manter as chamadas e as conversas a distáncia como jeitos de estar. Os abraços reproduzem-se em diferentes jeitos e agradeço em particular toda essa companhia que sinto enorme e constante.

As grandes alegrias ficárom reduzidas a momentos testemunhais que conquistamos com grande esforço. Saír a noite de Sam Joao. Percorrer a contorna de Compostela, a sonhar lugares onde morar e amar os prados floridos de Arins, o mirador, as pontes e a ermida agochada de Ponte Ulha. As revisões das árvores de Bonaval, onde por momentos sentim encher o peito e umha respiraçom real. Um breve retorno ao Sar e compras a dous.

O particular reencontro com Laura e Martim, almoçar com o Luís, os tempos pequenos com a família. O parque do conde de Bugalhal. O Tino. A crescente fascinaçom, que corresponde com a época, com as plantas ventureiras e os mundos diminutos que se formam à beira dos caminhos, cheios de cicatrizes, erosões, enrugas nas raizes como se os carvalhos tivessem séculos que desentranhar e pagasse a pena sempre parar um anaco a olhar para eles. Veu também o mês cheio de Barriga Verde. Novas metas cumpridas, satisfações e ideias que prometem novos e melhores jeitos de trabalhar. Umha ilusom menos cansa.

Com a fim da necessidade de me fabricar constantes alegrias de consolo ante a vida, atopo-me sem esses mecanismos de apoio. Como a necessidade nom chama do mesmo jeito que antes, deixo-me ir. E, no entanto, a recompensa continua no seu lugar. O concerto de Marisa Monte, leva-me na terceira cançom, entre arrepios e ameaça de bágoas a chegar aos olhos a umha sensaçom estar na casa. Nom de voltar, nem de recuperar algo perdido, a penas de se atopar num meu lugar à vontade. Seguem dentro os gostos e as alegrias da vida. Bem que se quis.

Ainda bem que vejo a felicidade sempre ao alcance da mao. Nom é um sonho de riquezas impossíveis nem de anceios inéditos. Nos últimos tempos apenas semelha umha questom de atopar umha posse ajeitada, umha luz. (Pero siempre es casi casi, nunca llega a lo mejor). Tempo de mais a pôr o foco num futuro imediato, nas mudanças que nom me atingem apenas a mim, gera também um cansaço de turrar pola vida. Reconheço-me esse direito à tristura. Mantenho a ilusom do caminho, a confiança nas companhias que estám a chegar.

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Os golpes de maio

Maio veu bater forte, ineludível ao sol manifestado. Ao seu abeiro, coma sempre, congela-se a decrepitude, deixa de transcorrer a quotidiana degradaçom: Nestas tardes quase poderíamos ser unicamente aquilo que fica iluminado. Nesta época, mesmo no fundo da cidade o ar vem carregado de arrecendos, evidencia-se também aí a realidade da época, a surpresa de que as flores reclamem também lá o seu lugar. Cria-se um espaço que nos situa numha possiçom de proximidade com elas, na familiaridade confusa dum parentesco afastado, e nos deixa ao tempo com a sensaçom de ficarmos fora dessa revoluçom, desconectados do tempo concreto.

Os trevões tampouco perdoam, a chúvia cai pura e direta do céu, sem transições. Pingueiras gordas e frias deixam clara a água que contenhem, dam o toque no ombreiro a reclamar, eles também, atençom a um tempo do que nom há escape possível. Por mais que fechados nestes dias, jorde a ideia de fugir, de que tem que ser possível habitar um lugar menos intenso, um outro modo de atravessar estas tardes tam longas.

Dum jeito ou doutro, o tempo bate enorme, com toda essa massa de reclamos, sensaçoes e problemas que obriga a se possicionar fronte à brutal força de empurre que achega. Nada pode ficar indene em maio.

O mes arrincou com os nervos e o enfado de abril ainda por riba de um. Os primeiros momentos de liberdade depois do tempo centrado em subsídios deixam-se sentir como se nom tivesse sido tanto, e apenas se ganhasse agora um bocado mais de vagar. Aginha a actividade descabalgou a sensaçom de calma. No ámbito semiprofissional, Maio ferveu e tentei manter a raia as chamadas de atençom, ainda cum medo, poida que de mais, aos excessos e a olhada posta na necessidade de manter um espaço próprio. Um breve reencontro com o projeto de Vite, como a fechar com emoçom aquele tempo. A mesa redonda que afinal nom foi. O Barriga Verde na Ascensom. Aprendizagem em proteçom de dados. Muitas cousas reclamam a atençom e um tempo que ainda nom tenho claro se abonda. Também vinhérom dias cheios de revisões médicas próprias e alheias, provas, resultados pendentes, sensaçom de aguarda por cousas que em nada dependem de nós. .

Em geral houvo um estado de alerta que se mantivo ao longo de boa parte do mês. Atender danos que desta volta se multiplicárom arredor e nom som singelos de tratar. Ouvir e tentar nom ficar atordoado de problemas. Estes ritmos acentuárom a covardia, o instinto de conservaçom, o dizer nom e retirar-me e limitar a presença pública porque cómpre cuidar-nos para superar tanta ramalhada que nos dá nos olhos, a passar os dias com tal velocidade. Agroma a perspectiva de dormir mais, de ficar enclustrado, como ajeitadamente me narrou este livro, como a traer umha fantasia antiga. Ajudou-me aí o Merlim a atopar leituras ilusionantes, o tom exato que preciso.

Afinal maio sacudiu por muitas bandas, com nervos, insonias, artrites, esgotamentos e as incertezas todas. Assim andámos arrastados polas inércias que gerárom os dias, os eclipses, as luas e as cousas que acontecérom. Às voltas na cama e pola vida adiante, essas alterações combinárom ao seu jeito com abraços demorados e breves espaços de quase calma, temperados com o assombro constante pola profusom de cores e a apariçom indiscutível das sombras a marcar caminhos.

Entre tanta hóstia, e mesmo com essa imensa presença, maio fixo-se em grande medida uma intuiçom, algo do que fomos conscientes, mas cujo alcance real só chegámos a albiscar pola beira do olho, a passar entre os dias a toda velocidade. Só por momentos apareceu a seguridade de que nom o estávamos a percorrer, mas apenas a olhar de través. O apelo que fai o mês é a viver, nom se sabe como. Há que ir fora e procurá-lo, abraçar-se a algo até que se faga certo, respirá-lo tudo e dar com a chave.

A certa altura fai-se urgente responder dalgum jeito ao chamado. Abrir o foco apareceu como a opção mais necessária. Sacar a cabeça dos assuntos internos e atopar um consolo exterior (diferente do de antes, menos necessário, menos intenso) no cenário, em todas as cousas que acontecem arredor, no pano de fundo que caracteriza estes dias e os fai particulares, eles sós dos que conformam o ano. Atopo a solidez naquilo que de regular tenhem todas estas mudanças, o conhecido do cámbio. Também no sólido amor que contenhem os gestos quotidianos: Os bicos de bem-vinda. Pôr a mesa para dous. Encher a neveira. Partilhar o cobertor nas breves sestas de sofá. Trabalhar juntos na cozinha. Inventar-lhe letras às canções e rir da rádio. Abraçar-se no meio da noite.

Canda a eles, tempos de pausa atesouram-se na memória como tesouros, excepções nos que deixamos crescer essoutra parte de maio. A descoberta da Ilha do Refúgio e do Tambre em Sigüeiro. As paragens em Bonaval a escrever e a reconhecer as árvores. O passeio com a gente de taichi. A recorrência de Tino e de Luzia. A nova casa do Rapo. Os momentos de leituras. Os espaços de acolhida nos que nom se preocupar e dialogar. A chúvia das inflorescências dos pinheiros. A estranha experiência da visita a um gandeiro que trunfou e semelha feliz na sua peculiar prosperidade. Um dia inteiro de praia. Rol a dous. Subastado e escoba a três. This is Us e Derry Girls.

Com tudo isso, o mês acaba numha sensaçom estranha na que se mestura a sana indiferência com momentos de melancolia, irritabilidade inconcreta, ausência de entusiasmos, sensaçom de precisar ainda mais um bocado de pausa. Sei lá. Cansaço, afinal.

Por ocasiões as dores acumuladas geram a sensaçom de que um está feito sobretudo de feridas de diferentes épocas. Que nom há eu por nengures, apenas tecido cicatricial mais ou menos curado por cima do que terám sido outras velhas feridas, e que tudo o que fica é umha aprendizagem que, por fortuna, ainda nos deixa moles abondo para que dóia, cada vez com menos armaduras e menos preocupaçom polo aspeto que há apresentar o conjunto. Umha soma, por outra banda, a cada volta mais capaz de se abraçar a sim própria e ao mundo para se dar forma, sem mais moldes nos que encaixar do que os braços que importam.

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Abril sem pé

Abril é um tránsito incerto, esvaradio pola chúvia, sem espaço fixo no que pousar o pé. O mês nom dá refúgio, nunca consegue ser um lugar. O cámbio constante ao que nos somete, com umha paisagem que, mesmo na cidade, achega surpresas contínuas, despoja os dias das mínimas permanéncias e deixa-nos fiados apenas polas rotinas mais quotidianas. Abril desenvolve-se pois como um caminho enchoupado, desses que atopámos vários nestas semanas, onde há que ir de rocha em rocha e o medo contínuo a molhar os sapatos, ao fracasso que sempre é absoluto, aparece.

O mês veu inzado de trabalho, de noites mal durmidas, de vida em jornadas que poderia chamar de subsistência, mas que nesta altura achegam, com tudo, o sentido que preciso. Trabalhar, ouvir algo de música, as tarefas no fogar, programas random na televisom e leituras para prender o sono. A tua companha diária como suporte vital. A necessidade de procurar além desses factos pequenos desaparece, e nom tenho res que lhe exigir aos dias para os sentir.

Aparecérom por surpresa atividades culturais: um convite ao oasis do Porco de Pé no teatro. A expossiçom do surrealismo na Cidade da Cultura. Até a feira medieval de Monforte chegou sem se planificar em jeito nengum.

Polo meio, umhas férias prolongadas que nom acabárom de ser desconexom, marcadas por encontros acelerados. A cas da Isa e o Jose como algo que nom devera ser tam extraordinário, os Ambroa logo de meses, o David de Barcelona já como rotina de cada tempo de férias. O açar levou-nos, logo de estar tempo a trabalhar num projeto para o lugar, a Oseira, onde nom voltara desde a que quiçais fosse a primeira excursom escolar, poida que aos oito anos. Reconhecim espaços polos que andivemos às carreiras no que no seu dia ficara na memória como um prado anónimo numha jornada memorável. E o estranho de comprovar que aqueles carvalhos eram os mesmos, e que este tempo intermédio seria para eles apenas um passo mais e nom umha vida como no meu caso.


Mais contínua, a presença do Sérgio, o Salva de volta depois de o atopar por toda a parte durante umhas semanas. As quendas quase milimétricas da Luzia, a nos emprestar os abraços que fagam falha, e a ocasional Alejandra. Canda às presenças, a multiplicaçom de jeitos de estar a distáncia, entre conversas, videochamadas, crónicas sonoras e abraços dados de mil formas diferentes. Fazemos pinha nestes tempos incertos. Primeiras pausas deitado Bonaval, a passar-lhe revista às àrvores e comprovar as mudanças à par que a familiaridade que já desenvolvemos. Os diferentes carvalhos, o castinheiro de índias em flor, a nogueira, os magnólios, a cerdeira agochada.

Um sonho estranho leva-me da mao de Bogart a repassar a minha relaçom com as cousas, um desapego emocional crescente. A descifrar a mensagem constato como o meu subconsciente vai assimilando que nada é realmente a Rolda de Noite de Rembrandt, que tudo o valor dos objectos é umha aposta minha, um amarre neles, que os transforma em baleias que levar dum a outro lugar. Ainda caminho na estranheza de me atopar com um mundo ao que nom lhe reclamo nada e que nom me estremece como antes.

Com o 25 de abril finaliza esta estapa de trabalho intenso a solicitar ajudas. Nom sinto a pausa como umha libertaçom, e nom é polas cousas que ficárom pendentes nesse período (inevitáveis), mas porque nom som quem de marcar a fronteira. Como noutras cousas da vida, eslue-se aqui também a opossiçom como jeito de compreender a vida. Terei agora mais tempo livre, mais espaço mental, mas a mudança é de grado mais do que de qualidade. Se acaso, poderei centrar-me agora mais em revisar estes trocos na relaçom com o mundo.

A certa altura, juntam-se cousas que se resolvem ou desatascam, como as nuvens de trebom. Como sempre, coincidências. Como os três suicídios na comarca a quadrar na lua cheia. As duas mortes do 23 de abril, umha a quadrar justo quando pergunto pola defunta. Coincidências. As abelhas a tentar entrar insistentes na casa, o abelhom morto na galeria. A telha que quase esnafra a Belém. O simbolismo da lápida baleira do meu bisavó, a aguardar por alguém no cemitério de Tálhara.

A morte fixo-se presente, arredor, como umha película que dificulta movimentos e alegrias, que mitiga as esperanças como um certo filme negro de chapapote e nos mantém também nesta certa inércia pandémica de nom fazermos ruídos e nos comportar, de seguir na vida de jeito discreto, em silêncio por respeto às dores e a nos querer, sim, baixinho.

Foi o mês também um mostrário arredor de desencontros e amanhos com maior ou menor jeito, movimentos telúricos por toda a contorna. Acho que é a conta deles, que ao bordo da eclipse acordo de mau humor. Muda também o jeito de viver as ansiedades, e nas últimas jornadas acumula-se umha sensaçom de certo derrubamento geral, de aguarda, de questões pendentes de resolver, malestares e cousas que se esfarelam por toda a parte. E nom dou feito, e alterno tempos de desesperaçom com pausas fondas de calma.

Um dia chega o sol invicto, indiscutível. Alumea outra verdade, situa-nos numha outra banda na que a pele despreza o inverno como impossível. O calor dá-lhe forma nova aos corpos, às ruas e ao frescor do portal escuro. Reclama os pés na erva, bota os círrios a vestir os céus. E fecha abril inquedo, que passou como se só tivesse sido um prologo para o seu momento final, um cozinhar a modo primavera.

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Março interior

Março transcorreu sem se olhar, os dias seguidos uns por trás dos outros a transcorrer fora do tempo  externo, num caminho marcado polos ritmos da própria vida, que nom das estações. O pano com o que a chúvia nos separa do mundo, o trabalho absorvente fixo mais singela a abstraçom e contribuiu a nos manter neste domínio interior. A travessia desenvolveu-se constante, com a força contida dum motor de barco fixado numha marcha curta a surcar este tránsito que sempre é o mês, que se situa no meio como um equador que compre atravessar.

Céus novos

Há rastos fugazes de primavera nas fendas destes dias. Céus novos, sementes e flores que se desenvolvem quase pola beira do olho e se verificam nos passeios mais breves, nas visitas regulares e mínimas a Bonaval. À explosom inicial segue um certo estancamento, e até decepciona rematar o mês com tantas árvores ainda espidas. Mesmo assim supreendem as mudanças em pontos concretos do tempo, como se nom fossem processos quase contínuos e dum dia para outro se instalasse a nova época. Comprovar a luz que entra pola janela e toca novos pontos das paredes, verificar como a maré da primavera traspassa, cada vez que se olha, as marcas imaginárias que contenhem o dia e a noite nuns limites concebíveis e fixados polo costume da invernada.

Como vistos desde longe, ou através dumha janela, sucedem-se os signos desse tránsito. Desenvolve-se a estranheza dos dias do final do inverno com o tom apocalíptico da guerra distante, o pó do Sara, a greve de transporte, a sucessom de tarefas pontuadas polas breves fugidas. A chuva atua também como um abrigo desde o que contemplar o mundo, e nom o fai polos ecos doutros invernos. A familiaridade que lhe achega a água à paisagem dá-se num nível nom nostálgico, retirada boa parte do peso escuro com o que batia no corpo. As mudanças repentinas do tempo deixam-se sentir nos ossos, o mundo a reclamar a atençom que sempre merece, a insistir na nossa ligaçom com os ritmos da terra, a nos atar a essa materialidade planetária. Como me é habitual, altera-se o sono nas proximidades do troco de hora. Ergo-me absurdamente cedo sem necessidade, mas o corpo nom pede mais, ajeita-se ao que lhe marca este período de transições. E depois da data, vai-se regulando, aparece essa sensaçom de agarimo que é acordar e voltar a durmir.

Toda a densidade com a que passou este tempo veu da gestom de moreas de trabalho. A habitual concentraçom de solicitudes de ajudas para associações que se dá cada ano por esta época tivo-me ocupado, algo agobiado, entretido. Adiei consultas médicas, passeios, encontros com gente. Coincidiu isso com um pico de eólicos, tarefas extras também para a Belém. Fazemos entom as jornadas num certo estado de excepçom que, no entanto, nom dói, nom se vive como umha perda de viver. As tarefas sucedem-se, levam a picos pontuais de agóbio, mas nom chegam a ferir, a afundir, a se fazer de mais. Desenvolvem-se estes procesos num nível mais superficial. Batem mais fondo algumhas outras preocupações: A procura de casa, se imaginar em novas situações e o medo a se trabucar ou deixar perder algumha oportunidade. Ou as situações familiares, gente arredor que precisa apoio, que se vê arrastada por infelicidades velhas. Tiram algo o sono e, no entanto, apenas som momentos. De jeito inevitável, a acumulaçom deixa-se sentir em certos pontos do corpo, o pescoço, a mandíbula, a respiraçom na parte alta do peito.

Houvo algumha excursom. Atopei no caminho umha pedra supostamente furada de jeito natural, como aquelas que lim nalgures que permitem olhar as fadas ao seu través. Apreço-a abondo para a levar um anaco, prová-la, agradecer o momento de magia que supom. Mas, de jeito inédito, nom tenho a necessidade de a carregar.

Começou o mês a cuidar moa, as heranças, os velhos. Acunhei a ideia de que existe umha tradiçom familiar de deixar apodrecer as coisas (casas, relações, lembranças) que resume e evidência muitas cousas complexas. Sucedérom-se os encontros com frequências inusitadas, as conversas presenciais e as múltiplas chamadas e videochamadas. A continuidade de Luzia, mais presente do habitual e sempre a acompanhar e descobrir jeitos inéditos de ver o mundo mais comum, o trabalho, as amizades, os cuidados. A Alejandra, o Heitor e o Xico, Jocas e Sérgio e famílias. Vemo-nos por Ponte Vedra, ainda como a tentarmos definir umha quotidianidade que está no ar, cheias a vidas de mudanças a meio fazer e que nos levarám a nos tratar de jeito diferente, outros temas, outros momentos, outros cansaços e ilusões. A visita de Isa deixou um momento de quase normalidade postpandemica, com esse tomar duas cervejas seguidas em grupo. Também a presença mais contínua do Tino, pouco habitual, marcou a primeira metade do mês. Os encontros sem planificar, os passeios com o Ginzo, derom um tom de redescoberta de aspectos da pessoa além dos cafés rápidos de meia hora, um sabor mais calmo à companha que se mistura com a velha familiaridade. Mais umha vez, a realidade rachou-nos o ritmo, e rematou a temporada a mantermos contacto em distáncias exóticas, a inventar novos jeitos de estar.

Um horizonte de casas

Com todas as cousas, o mês desenvolve-se simplesmente a estar e nom exige consolo. Os breves momentos de descobrir, caminhar, olhar, cheios de tesouros por toda a parte, agradecem-se polo que tenhem de pausa, deixam de ser imprescindíveis para lhe achegar sentido à vida.

A me chamar a atençom sobre as mudanças que se me desenvolvem em níveis pouco conscientes, ao ritmo mesmo da floraçom e da luz, despedimos a cadeira de oficina que me acompanhou desde o liceu, quase trinta anos já. Nom sinto mágoa por ela, nem polo tempo que passou. Ao contrário, num nível superficial, sinto-me estranho pola ausência dessas sensações, penso se fazer algum tipo de cerimónia de despedida, movido apenas pola inércia de guardar os ritos herdados dumha outra vida que resultava ser a minha. Mas nom resulta necessário e deixo-a ir.

That old feeling.

Também recibo umha foto de há vinte anos, casualmente sentado nessa mesma cadeira. É estranho. Olho-me e se acaso acho de menos algo daquele eu é a insolência que acompanhava a idade. Olho-a, totalmente baseada em medos e inseguridades que nom partilho já, e sinto-a como umha falsa seguridade que nem sequer foi nunca minha. Sinto mágoa polas feridas daquele eu decato-me de que na realidade o que falta hoje se acaso é a intensidade daquelas alegrias, a descoberta constante que se acompanhava também de grandes descensos, de inestabilidades, de preocupações por cousas pequenas. Ao abeiro disso repasso aquela “gin-fueled hapinness” de há dez anos, o papel inadvertido e normalizado dum bocado de álcool como recompensa mínima que merecíamos simplesmente por viver. Igual que as minhas danças maniacas para desaparecer no sagrado de cada cançom.

Acaba o mês a atopar no meio das tarefas os primeiros momentos de andar de camisola pola rua, a sensaçom primeira de agradecer artopar umha sombra no caminho, umha destas novas, feita de folhas do trinque que nos vam acompamhar nos vindeiros meses.

Nos ocos que me deixam os vários trabalhos, sinto que ainda estou em transiçom cara a outra identidade. Quanda a essas tarefas, que se sentem como grandes e simultáneas de mais, a cozinha, as compras, as lavadoras, contribuem a manter o movimento dos dias. Umha dinámica que, no entanto, nom se corresponde com umha convalescença, mas com algum jeito de estar doutra banda, mais próximo ao terreio, sem a separação imposta polas próprias neuras, as dores velhas, os automatismos. A densidade da existência é constante e morna, confortável. Ainda com certo assombro apalpo o ar a procurar o jeito no que se vive nesta levidade. Muda a minha relaçom com as relíquias. Deixo de precisar certos consolos e de reclamar compensações polos dias que passam. Pergunto-me quais serám as cousas nas que deixarei de pensar, que associações inéditas fará a cabeça desde estoutra banda. Vivo a explorar a própria vida.

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A paz das relíquias

Vivo umha estranha revoluçom interior. Numha transiçom mol e pouco definida, deixam de doer as relíquias. Cessam de estar abandonadas e faltas de amor, nom tenho já que as salvar. Contemplo-as como a iguais, assento nelas. Eu que tam bem compreendo o seu devir, agarimo-as como a velhas conhecidas, nom lhes tenho pena por serem o que som.

Do mesmo jeito que nom doem tampouco consolam em particular. Apenas nos abraçamos, a nos reconhecer numha familiaridade que nom é feita de desgraça, mas de sabermos que na altura já vivemos tanto elas coma min tempos; outros, que nom melhores.

Amar as ruínas polo que som, e nom polo que simbolizam.

Diria que nesta época sinto que as relíquias e mais eu enfrontamo-nos ao tempo com a mesma atitude de o deixar vir e nos tomar. Transformar-nos de projetos em espaços que colonizam o briom e as bactérias, voltados à luz do sol e ao abraço da chúvia, que afinal é por onde vem a vida realmente.

Que havia ser de nós se resistíssemos essa doada transformaçom, onde ficaríamos no esforço de mantermo-nos exclussivamente naquilo que ditava o plano original. A funçom certa, a pedra espida, os impulsos simples do começo. Onde ficaria a história, os meandros, as voltas que nos levárom em direções melhores e nunca supostas. Onde havia sentar se nom tivessem rachado estas pedras. Que tipo de conto contaria a minha pele sem contaminar.

Havia um resorte, um mecanismo tenso entre a gorja e boca do estômago. Soava discordante ao procurar por defeito os ventos que vinham do passado. Com essa peça figem a minha música de saudades, mesmo sem ser quem de a interpretar. Aquela tensom feita mágoa nutria-se da contradiçom com o presente, respirava-se como a tragédia constante do mundo a esgaçar nessas metades, situado eu como receptor e custódio do terrível e interminável processo.

Agora há mais ligeireza. Atopo-me sem esse peso, e polo tanto também algo desnortado. Caminho um bocado ao jeito astronauta: há pequenos assombros por toda a parte, percebo o mundo coma novo, mas ao tempo menos intenso. Careço daquela gravidade, das referências que achava me constituiam. Quiçais esteja a substituir aqueles fundamentos da personalidade por modos mais simples e flexíveis de ser. A mudança remexe-me também em lembranças que agora entendo diferentes e perdem o gume.

Ignoro onde vou olhar a partir de agora. Como me vai emocionar exatamente o mundo. Fai-se-me a existência um som de cordas lene, no que tudo se mistura sem aquela dor. Desaparece a necessidade urgente de consolo pola vida em sim mesma. E atopo-me sem aquela ánsia polos livros, as BDs, os filmes que me achegavam sentido. Que música hei gostar, fora dessa dualidade entre aqueles sons familiares que me feriam no conhecido e aqueloutros que sobretudo achegavam o consolamento? Que hei ler se a vida deixa de ser umha ferida precisada de luzes que a elevem e a tirem do pecado quotidiano que era a perda do tempo?

Ao jeito do apóstata, repito por familiaridade rituais que agora sinto mais baleiros. Os passeios, as fotografias dos amanheceres, as canções, as imagens que me amarravam àquela perspectiva. A olhada ao mundo prende ainda nos mesmos pontos e paisagens, mas nom atopa lá aquela conexom que doía e confortava. Mantenho na aparência o único jeito de estar que conheço, mas deixo que os dias lhe vaiam polindo as beiras e me gerem outras perspectivas. Enquanto descobro como soam as cordas que agora ficam livres no interior, ainda inseguro, deixo-me transportar, permito-me desfazer coma as ruínas que abraçam a chúvia e o inverno.

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Fevereiro de andar fronteira

Fevereiro tem um algo de mudança de ciclo. Neste em particular fai-se um ano de cousas e tudo vai melhor. Ausento-me de Bonaval umha semana e aproveitam os narcissos para florir com toda a insolência. Já está acugulado algum Carvalho. Caminho polos dias no assombro da multiplicação dos signos da vida. Chegam todos no seu momento mas mantem-se a surpresa. Amo os rebentos dos salgueiros, prévios à folha, a passar do tom branco ao verde e ao amarelo final. As espigas dos bidueiros, os abrolhos coriáceos que anunciam as vindeiras folhas, as flores primeiras que abrem caminho. Remata um inverno que abracei como nunca, que se deixou querer, e mesmo com a sua lentura semelha até cedo de mais.

O novo é nom ser nada disso símbolo nem esperança de nada. A maravilha está inserida nos mil matizes do cámbio em sim mesmos, nos estádios múltiplos nos que se desenvolve a eterna transformaçom. Passárom as flores do magnólio, os cogumelos, resistem ainda as laranjas, os céus mudam e tudo é correto, nom precisa ser consolo.

No entanto, os dias transmitem força desde desse crescimento. Essa suma de loureiros e de maceiras a florir, o calor de volta, os projetos, que nom sonhos, situam-nos noutro lugar. Fevereiro chama polas mudanças, a seguir a minha trajetória histórica. Em Fevereiro fum a Sar, chegamos a Melide, atopámos os primeiros signos do retorno a Compostela. Procuramos pois o sul-oeste em terreios baleiros como umha promessa de futuro para construir. O mês desenvolve-se a achegar o inevitável tom de fundo da inquedança que achegam as jornadas longas, o tempo de se desenvolver, as sementeiras. Celebramos numha semana de cousas pequenas o aniversário da Belém. Imos ao teatro. Fazemos visitas. Redescobremos Armenteira, sumamos lugares pendentes de visitar pola banda de Ponte Vedra. Nesse transcorrer desenvolvemos espaços próprios. Muda a dinámica das partidas.

Vivemos tempos sem máscara, conversas de reencontros. A galeria com Luzia, a caneca co Salva, a infusom com David, a Cidade da Cultura e os seus aviões com Alejandra. O Sar com Cristina, a Alameda e o Jocas, Área central com Fram, o encontro com a família de Biduido, o café com o Tino. Um falcom onda o Lérez, os encontros com o Sérgio. As conversas mais frequentes polo whatsapp, o seguimento mútuo com Merlim. Os dias enchem-se de presenças dotadas de carinhos singelos. Atopa-se umha continuidade no jeito no que transcorrem os encontros.

Na linha da claridade que achegava janeiro, na luz deste tempo o presente apanha um peso inédito na configuraçom do mundo. As cousas som como som e incorporam cadanseu passado ao feitio atual. Mesmo ao ocultá-lo, ao apagar o anterior, sinto que as transformações pagam religiosamente o seu tributo e fam-se com o que já foi. Sinto disolver-se a tensom eterna entre tempos que tanto me tem levado: tudo se transforma no seu momento do mesmo jeito que as estações.

Este tempo vem no seu lugar e transcorre no encanto do corrente, dos dias de trabalho e dos recados. A maravilha está no olhar, o agarimo nas horas que fam favor de lembrar outras horas de transiçom, sem fitos próprios nem falta que fam. O encanto de fevereiro é o desse passo lene que na realidade ocupa o grosso da existência (o lugar do meio, o aeroporto, a área de serviço), com todo o que tem de refúgio e de familiar. É o mês umha fronteira discreta que, no canto de cruzar, percorremos de jeito demorado, a olhar uns lugares que ainda nos som alheios e que nom importamos realmente de conquistar ou nom. O familiar é a sensação de funambulismo fácil, esse caminho neutro e a passo lento que nos fai conscientes.

Assim, as obrigas, o pesadelo dos subsídios, as intensificaçom do trabalho correspondente a este tempo, também se dobregam ao mandato do mês. Os grandes projetos transformam-se em tarefas possíveis, nom exigem grandes stresses e vam-se fazendo dentro do próprio transcorrer da vida, apenas com certas reclamações aos nervos nos últimos dias. Também toca se armar mentalmente ante a guerra, procurar, informar-se, fazer-se opiniom, comprender como defesa básica ante a barbárie, como jeito de lhe dar forma ao medo.

Fora disso, há jornadas de se deixar estar, de infeçom dental, umha vaga de torcicolo (5 casos!) a quadrar na lua cheia, horas de ceder à TV e olhar o que for. Falta-me acaso aí atopar ilusom nalgum conteúdo, levo um tempo a me acomodar a leituras singelas para dormir, a séries que apenas me movem, a me conformar e procurar conforto por cima de tudo no consumo cultural. Será quiçais a última pegada da retirada do café.

Em geral a sensaçom é de ser quem. Nom fiquei mais pampo. A motivaçom é diferente. A rotina desenvolve-se com muitas menos alterações. Fago uma listagem de teimas que perdim, compulsões e medos que já nom reconheço. A vida adquiriu, semelha, umha certa levidade. Dotada da força da gravidade justa, transcorre em plano. Caminho ainda sem me afazer de tudo a este novo jeito de movimento, com menos ocos, com um olhar diferente, sem aquel resorte dentro a me tensar o alento entre o perdido e o presente. O dia está no seu lugar, nele moramos. Nom compre outro lugar, outro mês. A fronteira de fevereiro é larga abondo, e gostosa de caminhar.

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Janeiro puro

Em janeiro, a nitidez das polas completamente espidas das árvores reduze a percepçom do mundo às formas puras, coas suas complexidades desvestidas de ilusões e de folhagem. Dessa pureza achega-se nestes dias umha sensaçom de força muito básica. É a solidez com que sinto o teu corpo ao te abraçar no meio da noite ou aquela com a que impulso os músculos das pernas ao caminhar.

Ha satisfação em olhar esses traços marcados fronte ao céu. Contenhem uma verdade fria, achegam uma nitidez reconfortante ao mundo. Apreço esse jeito que tenhem de desenhar caminhos bifurcados que, no entanto, ficam abondo claros para servir como mapas, para conformar um roteiro claro do que é a vida meste tempo quase calado (nom de tudo: já os gromos, as mimosas, os primeiros cantos novos de passaros ao amencer desmentem qualquer perfeiçom de silêncio. Nunca a mensagem é unívoca, tudo contém um bocado do seu contrário)

Combinado com o veludo deste sol de inverno, que dalgum jeito nos reúne ao mundo, às lembranças e mais a nós no seu agarimo dourado, o mês foi colhendo umha contorna amável, de passeios sem rumo e atemperados com as descobertas mínimas de passaros comuns a fazer cousas comuns, dos garabulhos que se agocham na erva. Nom é a expectação pola primavera, mas o reconhecimento do que de enorme tem esta época, do jeito lento e concreto no que a vida e o seu ciclo toma forma nestas datas. Passeio a modo por Bonaval e sento a gozar desse feitiço.

Desenvolvemos alguns encontros extensos em Ponte Vedra para arrincar o ano, acubilhados todos no ar destas mesmas tardes que conseguimos até fazer longas, toda a quadrilha quase reunida. Que bom é o inverno que nos reúne arredor de qualquer lume que poidamos inventar. E esse ver-se cada tantos meses com os emigrados e se pôr o dia, e olhar brevemente (em traços puros, nom dá para mais o tempo) como imos mudando, amanhando-nos, desesperando, levando a vida.

Há mesmo ocasiom de acompanhamentos demorados. O Sérgio. A Marie. As cervejas que acompanham simulam nom ser tam extraordinárias como na realidade som. Abordamos um roteiro pendente por Codeseda, a ver essa gente extraordinária (amizades de amizades) que anda polos bordos da vida. Umha fim de semana a fazer carreiras tolas para chegar momentos pausados e agarimosos como havia tempo. Botamos amarras, mesmo ocasionais, em cada coincidência. Fazemos por manter a rede, e a achegar carinho e suporte aprendemos, sentimo-nos, geramos luzes que nos dam sentido às fendas, que nos permitem alumear o interior, ser permeáveis ao mundo. Até voltamos ao teatro para dar umha aperta. Fica a sensaçom de pouco tempo com Anna, e dumha boa obra que nom nos chega no melhor momento, cedo ainda para as alegorias.


Atopamos momentos para pausar o ritmo de visitas. Umha semana de ilhamento (contactos estreitos) achega uns limites que até se agradecem na incerteza da enésima vaga de pandemia. Os dias livres de Belém proporcionam-me também umha achega extra de ar, de tempo e de alegrias pequenas juntos. Assovio, descobro espaços de bom humor. Artelhamos planos e armamos sonhos. Resolvemos questões pendentes, colgamos cousas das paredes (o novo espelho no quarto achega umha presença indecisa à beira da cama, umha porta, um espaço no que se pode dar movimento). As avarias do lava-louças e a pingueira do termo som como um toque de atençom à infraestrutura, a como queremos fazer e viver. A família bem, dalgum jeito a explorar novas vias de comunicaçom e de carinho, de descobertas e de partilhas. Com eles, e nós mesmos, exploramos rios, percorremos paisagens anódinos como jeitos de definir, em curvas e ladeiras, cara a onde queremos olhar. 

Bate-me na artrite a explosom dum vulcao da outra banda do mundo. Morre Thich Nhat Hanh. Ecoam em mim cousas afastadas. Atopo-me com um pensamento menos centrado polo café, sem sobressaltos, mais orientado a esta escrita e menos a planos complexos, sem febres criativas e quiçais um bocado menos capaz. Deixo que aconteça e olho como me vou fazendo.

Enfronto o medo recorrente destes começos: o excesso de trabalho, a capacidade de fazer sem se ver superado. Há um certo peso nesse tudo por fazer, mas semelha menos do que outras vezes. Sei mais e tenho mais ajudas. Havemos de poder, teremo-lo a raia, nom se desmandará.

Canda a esse temor difuso, na claridade do mês chega também um medo nítido. O processo do ictus, a aguarda hospitalar, as novas escassas. Umha preocupaçom pura que logo se vai mitigando com melhorias e esperança.

Os últimos dias transcorrem nos passos lentos da aldeia, nos sabores do cozido, no contínuo repasso aos mesmos lugares, o repetir as mesmas histórias como jeitos de se ancorar ao lugar, de lhe fazer sentido e fixá-lo fronte ao troco contínuo de arredor. O mês finaliza cum dia de fugida, explorar Baldaio, dar-lhe voltas aos caminhos. Os horizontes semelham possíveis, a luz é nossa.

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O pecado original


Será polo cambio social, os traumas familiares herdados, o estarmos ainda numa contorna sem certezas sociais claras de como devem ser as cousas, cada vez os trocos mais acelerados. Mas somos legiom os que temos essa tacha, umha particular necessidade de justarmos contas com nós mesmos, com a família com o país que nos come energias e anos.

Acho que fum consciente primeiro ao conhecer os meus erasmus alemães. Aparentemente com visões claras, confiança em sim mesmos e nas chances de futuro, sem remorsos por proclamar a sua individualidade e independência, acostumados a um ritmo vital de estar ir embora, ver os velhos só polas festas em relações aparentemente sanas.

Fronte a eles, nos agíamos assustados pola crises, aterrados pola perda de emprego, cobertos de incertezas, sem sabermos como gerir os velhos, as aldeias, sem conhecermos ou sem crermos sequer o repertório no que podemos escolher.

Passamos anos a falar, a beber, a tentar descifrarmos ou criar algum tipo de lugar com referentes claros. Amamos os amigos com desesperação, aferramo-nos às parelhas, arraigamos em bares, em grupos, em afeições, em teimas e ódios como soluções precárias que nos achegam um certo acougo.

Velaí a demora nos filhos, em encarreirar a vida, em atopar certezas. Os milheiros de horas que tivemos que dedicar a nos fazer, a nos resolver, nom fórom ao estudo de línguas nem a mestrados, nem a formações que nos podiam levar a supostos grandes destinos, e malamente a terapias ou deportes. Entregamo-las pola contra ao trabalho de construir seguridades que outros tenhem de base.

Nessas chatas ficamos atrapados muitos e nom nos afastamos do lugar por um suposto amor à terra que em grande medida é a incapacidade de fugir desse cenário conhecido, onde moram as inseguridades. Se imos embora pagamos um alto preço de distâncias arrependimentos, rituais compulsivos de ligação à origem, férias comprometidas todos os anos em voltar, no elevado mantimento enfim que exige o vínculo.

Em geral, tardamos em ser, em nos reconhecer abondo para poder dizer que vivemos. Poida que este processo nos faga mais interessantes, que nos achegue umha maior sensibilidade de cara às cousas do além, que nos engada inéditas capacidades de compreensão. Sei lá. Mas é deste jeito que somos, quando menos umha grande parte da gente que andamos por cá.

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Um lugar antes de nascer

Spitfire


Tudo estava pronto para querer ir lá. A gente e as cousas da minha casa apontavam todas de jeito indefectível na mesma direçom: A felicidade, ou quando menos o fogar, estava situado num algures que já passara.

Nascim aos oito meses de morrer o meu avó. Poucos anos depois do cataclismo de o meu pai voltar da mercante para a casa. Da minha mae deixar o seu trabalho assalariado para gerir a tenda dos seus próprios ascendentes e cair nessa condena sem tempo para a vida, treze ou catorze horas por dia a olhar o mesmo plano da praça, desde detrás do mostrador.

O luto e a incerteza instalárom-se na casa, escoárom desde a minha avoa por toda a família. Os traumas de cada um dos membros com a situaçom achegárom a sua força aos silêncios com os que se soterrárom os conflitos irresolúveis do matrimónio. Olhado desde hoje, semelha ter sido essa umha casa sem alegria, cheia de segredos e de sobreentendidos. Velaí o estranhas que eram para mim as visitas familiares, os encontros com primos e tios onde havia risos e agarimo.

O olhar atrás colheu peso naquele fogar. A aldeia, abandonada, marcava umha arcádia passada. Mesmo rejeitada, seguia a protagonizar as histórias num lugar nom abondavam anécdotas possitivas no cotiám. Canda a essa localizaçom estavam os contos da infáncia dos irmaos mais velhos e a mocidade da minha mae. Tudo reforçado polos objectos mais peregrinos, relíquias de dez ou quinze anos atrás que constituíam a decoraçom da casa. O painel com os símbolos do zodiaco, o recordo de Nova Orleans, as figuras de África, a aterradora cria de cocrodilo dissecada, o mapa do Brasil feito em cristais de rocha, as baixelas, os quadros de bolboretas e paisagens japoneses e aquelas tecnologias quase segredas também chegadas das viagens (prismáticos, cámara de fotos, walkie talkies, magnetofone…). Todo dum tempo quando começava a nova vida do matrimónio, quando ainda o avó vivia, quando o meu pai vinha apenas de visita. E ainda os joguetes deteriorados que herdava, relíquias que amosavam em sim mesmos a existência dum passado onde tudo estava íntegro.

Foi aí que atopei os meus próprios óculos para olhar cara atrás. Velaí chegárom os Beatles, que dalgum jeito identifiquei com esse tempo passado e acolhim como umha cristalizaçom do mesmo. As suas canções soavam como umha resposta desde lá à chamada silandeira e opressiva que todo o mundo fazia desde a casa. As primeiras escuitas, poida que aos quatro anos, reforçárom-se depois com a adoraçom partilhada com o irmao, das poucas cousas que desenvolvíamos em comum durante todos aqueles anos de pelejas e de convivência tensa e calada.

No mesmo caminho aparecérom os aviões antigos. O Spitfire azul de joguete que herdei do irmao maior, que adotei como brinquedo favorito, um fetiche do tempo que partihámos a jogar nos meus primeiros anos. Logo de aí chegou o gosto obsessivo que até certo ponto ainda conservo, como aquele que desenvolvem as crianças com os dinossauros (que também tivem). Afinal, os velhos aviões som claros símbolos de liberdade e de poder, da magia que os fai voar. E tenhem essa capacidade evocadora a tempos que pensamos mais singelos e nítidos. Sensações marcadas também pola ideia da guerra como um período extraordinário e revolto, onde tudo era possível e ao tempo ficavam claros os bandos.

E velaí chegou Tolkien aos 11 anos a afundar no mesmo caminho. A me achegar mais umha resposta só minha a essa olhada contínua cara atrás na que medramos. O Senhor dos Aneis foi um jeito de mochila no que meter toda aquela saudade familiar e carrega-la ao lombo para desenvolver o meu próprio caminho. Veu depois a adiçom ao consolo que achegava a fantasia toda, mesmo o rol, como diferentes perspetivas de cara a umha mesma paisagem prévia e nom arruinada.

Ainda mais tarde, a Antropologia como vocaçom apareceu a achegar o consolo de atopar quem conservava as cousas que vinham desse mundo passado, o alívio que continha esse corpus de estudos que conetava com os saberes chegados da aldeia. Canda a isto, aparecia a compreensom, a sensaçom de domínio, o conhecimento do que significavam realmente aquelas cousas. Num jeito de terapia, a disciplina permitia explicar e evidenciar elementos e situações que ainda marcavam e marcam a minha contorna, fazé-los conscientes, tirar-lhes o poder oculto que mantinham sobre mim.

Afinal todos os elementos conjurárom-se a me levar cara a um lugar antes de ter nascido. Todos tenhem em comum o achegarem esse conforto imprescindível para me permitir botar a andar. Ler, conhecer, estudar, saber, olhar imagens destas cousas achega-me ainda calma, sensaçom de controlo e de conhecimento, um espaço familiar enfim. E ainda bem que atopei essas respostas, mesmo que nom fossem soluções. Que me permitírom fetichizar a inquedança inconcreta que pairava no fogar, dirigí-la e articulá-la na própria vida. Foi através de companhias coma essas que desenvolvim emoções, que canalicei as mágoas, que abrim certa porta cara a fóra dos malestares do fogar.

Estou-lhes agradecido e agora ficam comigo, sem aquele sentido, feitas também fetiches da minha própria biografia, cimentos da personalidade que me conetam com aquele eu de curta idade, mais do que com aquele passado imaginado com o que aprendo a conviver. Estou-lhes agradecido e podo amá-los e desfrutá-los sem os necessitar da mesma maneira, feitos ecos de ecos dum período, cada vez com mais reverberações de mim mesmo e menos daquele mundo de antes de nascer.

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A geraçom constante de relíquias (Relíquias VI)

Ultimamente caminho pola rua e atopo a sensaçom de estar a passar por um tempo já ido. Como olhado com distáncia, como se já fosse lembrança, como se nom fossem perdurar (que nom perdurarám) estes jeitos de viver, estes modelos de carros, estes restaurantes. Como se os estabelecimentos todos fossem já algo caducado, vestígios doutro tempo.

Nos passeios, as montras aparecem como algo já ultrapassado, do mesmo jeito que levam décadas a semelhar desfassados aqueles modelos antigos que formavam como um portal polo que entrar ao negócio (aniquiladas pola bunkerizaçom para nom facilitar espaços aos ionkis nos anos 80).

A dispossiçom de elementos por trás dum cristal, apenas com o preço, semelha algo totalmente démodé fronte a informaçom do produto que achega a rede, um fetiche que se cumpre por tradiçom. Do mesmo jeito, o modelo de pequeno comércio, com a disponibilidade limitada de modelos, o stock que se acumula, como nas sapatarias, a formar muros de caixas, e os correspondentes tesouros esquecidos de décadas passadas a aguardar no fundo do local semelham totalmente fóra de lugar nesta altura.

Nom me acontece isso apenas a olhar os velhos estabelecimentos agónicos do casco antigo de Viveiro, totalmente baleiro, ou do velho Porto. Nom falo daqueles comércios de resistência mais evidentes. Mas da zona nova de Compostela, das ruas da Corunha, de espaços modernos com atividade e supostamente adaptados aos tempos presentes. Olho as ruas a pensar que aginha ham se baleirar. Até me acontece também com os centros comerciais, sinto que logo ham começar a partilhar também esse ar de derrota e de relíquia. Como serám as ruas que nos fiquem? Sem montras, com apenas um ou dous comércios e algum bar ou restaurante cada 200 metros, mais escuras, com as franquias como únicos espaços ainda ativos, com o capital mais concentrado e mais afastado de nós, cada vez mais diminuídos, mais pequenos, com menos poder.

A produçom de relíquias semelha acelerar-se com os anos, e aginha passam a ser passado e elementos evocadores cousas que estám mesmo ao nosso carom. Envelhecem tam rápido como surgem. A sensaçom de estar constantemente ao bordo de mudanças enormes (crise de decrescimento, vitualizaçom, concentraçom do capital) há ajudar a isso.

Cada vez mais e, ao tempo, com menos poder sobre mim. A história própria e a vida presente imponhem-se sem violência sobre esses pesos. Aceito melhor esse transfundo de destruições e de perdas que acompanha o nosso desenvolvimento. Ciente, mas sem dor, olho com curiosidade cada deterioramento, abandono, substituiçom, mudança que se dam nos meus dias, com ganas de abraçar, sem temor, a me perguntar como se relacionam com esta paisagem cambiante as pessoas arredor.

A paisagem de cada dia está entreverada de relíquias em processo. Olho-as com agarimo, a abraçar a parte de abandono que contenhem, irmandados pola ruína inevitável, o esquecimento que havemos ser.

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O dezembro demorado

O sol, as folhas, a luz inclinada, a noite longa e os trebões ocasionais outorgárom-lhe a dezembro umha densidade especialmente forte. Nom só isso: A multiplicidade de encontros, agarimos e ocasiões especiais que acompanhárom este tempo figérom da tarefa de atravessar os dias um esforço intenso e um caminho demorado.

O reconto fica possitivo em passeios, gente, ligeiros avanços vitais, sensaçom de força. No entanto, o ritmo quedo veu pontuado polos episódios dumha estranha série de cousas que se deterioram. Rabunho a mesa, arrinco um botom do tapizado do cabeceiro, atopo um furado no forro dumha bota, esgaça umha sapatilha, racha a folha nova da orquídea, o carro mete água no maleteiro, o lavalouças altera-se, o wifi dança.

A engadir ao conjunto um aspecto de magia, umha cheia luzes amaeçam falhar de maneiras inexplicáveis e repetitivas. As farolas piscam quando passo onda elas, a lámpada de mesa semelha querer acompanhar a respiraçom enquanto medito, a do estúdio saúda como se falhasse a luz, a certa altura um apagom deixa tudo às escuras. Sempre vivo essas estranhas piscadelas das luzes, que polo geral me acontecem em momento baixos ou de ánimo especialmente elevado, como um saúdo do mundo que me lembra o conetado que está tudo. Nom som quem desta volta de lhes dar significado e fico apenas no extraordinário da sucessom dos acontecimentos lumínicos.

De jeito mais grave, arredor, racham relações, há enfados, incompreensões. Eu supreendo-me a olhar tudo com bem mais distância que há anos, sem a alerta de perigo que acompanhava estes movimentos da contorna. Recomendo psicólogos, insisto em quanto da nossas insatisfações está na realidade em nós mesmos e nom nas situações nem nas companhias. Chamo a aprender destes naufrágios, sinto mágoa polas dores que se adivinham como causas e por aquelas que derivam destas mudanças, preocupo-me pola gente, mas como a saber já o jeito no que funcionam certas cousas, e que tudo pode dar certo por caminhos pouco predicíveis que nom preciso saber já. Tento acompanhar, a saber que nom é meu o drama, que nom devo estar no meio.

Passo semanas a me testar a respiraçom e as digestões, no ronsel da dieta polo refluxo gástrico. Segundo incorporo alimentos, vou detectando como se irrita a gorja, para dar passo a umha certa sensaçom mucosa que levava aí tempo e da que nom era ciente até este seu retorno. Penso em até que ponto estamos conformados por moléstias que nem sabemos. Ainda tarda o corpo e retornar a umha certa normalidade que tampouco sinto como óptima, e fica como algo pendente o melhorar também as digestões, o tentar reconquistar a gorja e ver se recupero voz.

A velocidade de cruzeiro da vida dá por momentos sensaçom de que já nom cabe nada mais, de que as tarefas do fogar e os deveres pontuais dum Barriga Verde que bem se apanha sem mim, canda ao trabalho, as reparações, a horas de madrugada acordado sem saber por quê e as histórias várias, nom permitem outras novidades. Aliás, algo acontece com a minha temperatura corporal noturna que acordo pola noite ou antes do acordador, que sinto como frio no lombo ou nas pernas. Como resultado disto tudo, chegam a certas alturas do mês uns cansaços enormes, que se resolvem em sestas longas, na necessidade imperiosa de descanso e de baixa atividade intelectual. Nessa linha e a procurar um sono mais temperám substituo a leitura de ensaio polo romance de fantasia, olho capítulo tras capítulo de Stargate Atlantis enquanto atendo o fogar, sem muita atençom, quinze anos depois de rematar cansado da série. Agradeço o conforto das tramas simples, dos arquétipos e dos mistérios de um capítulo só. O cansaço e a presença da série deixam-se quando paro na aldeia e boto umha sesta épica de mais de duas horas, a sonhar aventuras fantásticas e espaciais, a procura dum objeto mágico que, ao tempo, havia provocar um desastre no planeta. A ordem das sacerdotisas malvadas caíam na armadilha e ficavam com o aparelho, sem saber que ia ser a sua destruiçom.

Os reencontros mantenhem-se no mês, como se fosse já algo normal o nos chamar, atopar casualmente pola rua, quadrarmos e caminhar por Fontinhas. Imos de visita e atopamos cúmplices em projetos para umha vida diferente, sonhamos vizinhanças mais achegadas. Os cafés com o Tino e as conversas com o Merlim colhem ritmo quase de quotidianeidade. Paramos algumhas tardes de TV e de chuva. Percorremos Lalim e os pendelhos de inverno e cumprimos o labor pendente de atravessar Portodemouros no Ferry, como algum tipo de baptizo que nos liga ainda à Terra do Meio, e acabamos serám no Estilo de Melide. Em Ponte Vedra, visitas relaxadas, breves reencontros com o Cano, os Segarra ou Heidi, demoradas tardes com os Fraga, ou umha rápida expossiçom de origami dám-lhe um ar extraordinário ao tempo. Por Becerreá, jogos de tute e passeios escuros polo meio de eucaliptos e desfeitas. A Compostela chegam as inevitáveis visitas anuais que me levam como cada inverno ao Sarela e como quase cada semana a Bonaval, em encontros que cundem mas que sabem sempre a pouco.

O menor número de visitas, a precariedade vírica das celebrações, e quiçais o lhes outorgar um menor peso próprio fai que leve o Natal com menor pressom. Merco agasalhos e surpressas, sem aguardar nada em troca, apenas a me sentir bem por ser quem de expressar desse jeito os carinhos. A corresponder a umha certa tradiçom exploratória que acompanha as datas, caminho pola praia da minha infância, a apreçar a sua realidade e nom a laiar os seus (meus) câmbios. Exploramos a costa de Campelo, descobro no meu pai momentos inéditos de bom humor, surpresas que me dá e que alteram a paisagem tensa e pouco povoada estendida entre os dous desde há anos.

Acho que o poder do Natal, o seu engado quando cativo, era a ilusom de repetiçom que gerava. Os rituais de ir com a família apanhar o pinheiro, armar o Belém, as ruas com as mesmas decorações e esse estranho momento do ano no que havia repossições na TV davam numha congelaçom do momento. Certo que estavam as férias e os joguetes, o ar de que haviam acontecer cousas novas. Mas acho que o grande agarimo que me davam as festas era esse conforto de que voltava viver de novo um mesmo tempo, de que era possível fugir do linhal. O tempo de festa, sempre a se imitar a sim mesmo e ao tempo a achegar a sensaçom dum momento fora do tempo habitual. Quiçais fosse isso mesmo o que me provocava importante baixões pola época lá polos meus vinte e tantos. O retorno à casa, o atado aos mesmos ritos quando eu vivia já noutra dimensom e precisava outros espaços, figérom-se difíceis de levar durante anos. Nom agora, quando cumpro sem esforço compromissos, cuido, agasalho, recibo as visitas desejadas da gente exilada e gero os próprios rituais de companhia em tempos que já nom se sentem escuros.

Remata o mês com a já quase certeza do contágio inevitável a certa altura, velhas questões da herança pendentes de resolver. Um bocado canso, mas sobretudo agradecido polas mudanças que vam aparecendo na vida, polas companhias que se desenvolvem dum jeito orgánico na quotidianeidade, pola solidez da companhia que sinto no teu corpo ao me aconchegar na cama pola noite e que fai que a passagem do ano seja apenas mais um dia.

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Os 70 (Relíquias V)

O obradoiro de Doc, de Fraggle Rock, condensa em grande medida essa sensaçom dos 70.

Acho que já me está a passar, que foi um tempo vencelhado ao período que botamos a viver em Melide e em Lugo, lugares onde a transformaçom semelha mais lenta. Ou quiçais seria por volta da chegada aos 40 anos.

Mas durante uns anos, estivem a olhar para a década dos 70, a atopar os seus ecos nas ruas, nas montras, nos interiores albiscados das casas ao passar. Nom os anos do funk, mais bem aqueles que chegavam polas produções televisivas británicas e que me resultavam mais semelhantes ao que tinha arredor. Depressom industrial, brutalismo e vivendas em série, vidas obreiras e dias anuviados.

Pensar naquele espaço simbólico conduze-me a percepçom polos caminhos das paisagens urbanas, das revistas de decoraçom velhas, dos espaços públicos cheios de ferros enferrujados. Canda a isto, os interiores de madeira escura, a estética também da RFA, as paisagens alpinas com raparigos loiros a anunciar sintasol, os jérseis com desenhos, os relógios de cuco, os cartazes de lás Penguin Esmeralda. Ainda a TV a branco e preto, as barras de bar com acolchoados vermelhos nos bordos (quanto pode dizer dumha sociedade esse complemento nas barras, como amosa a aceitaçom do alcolismo, a importáncia do bar como espaço de socializaçom masculino, a atitude que se aguarda dos clientes, a longa duraçom das estadias…). Tudo embrulhado numha sensaçom de frio e dum certo rejeitamento que tenho vencelhado a esses estilos, como a sentir que eram algo sempre alheio ao meu ser, intrusos dum tempo que nom me correspondia.

Durante esses anos, estivem a atopar relíquias dos 70 por toda a parte, e nelas descobria essa sensaçom geral de decadência e da desapariçom inexorável que, sem tragédia, se leva posta. Recevia o impacto dum colecionista ao atopar um bar com o feeling exacto, um joguete, um cartaz de anúncio. Ainda as atopo, mas nom me batem do mesmo jeito, nom me perforam nem me dóim igual.

As supervivências dessa época marcárom desde sempre um espaço mítico anterior a mim, que chegou à minha vida já como restos dum naufrágio, em processo de substiuiçom polo neon, os solpores laranjas no caribe em todas as publicidades, a noite e as representações do deserto dos 80. Eram ecos e passados desconhecidos, cantantes melódicos, salas de festas, estilismos que ainda apareciam em reposições televisivas.

Por-me nesse foco levava-me a sentir o movimento do tempo embaixo dos pés, a desapariçom inexorável, a constataçom de que o manhá vai ser diferente. Som os edifícios que já vim nascer e desaparecer. As árvores e as cousas que semelhavam que vinham de sempre e que iam ser para sempre. Os setenta som quiçais a confirmaçom de que nom haverá outra vida para mim.

Assim, acho que olhar esses meus 70 era achegar-me ao baleiro que supom essa percepçom diferente entre o tempo vivido e o sem viver. Desque nascim até hoje passou tanto tempo como entre os anos 30 e o tempo no que cheguei. Mas aquelas décadas anteriores a um semelham muito mais prolongadas do que aquele tempo que olhámos. Já vi o auge e a caida do granito rosa porrinho na decoraçom, já som retros os bares nos anos 90. Quanto mais difícil e sermos conscientes das mudanças que se vam produzindo ao longo dos nossos anos do que aquelas que se sucedérom antes. Nalgum momento, perdémos a conta, possivelmente na altura em que a vida vai sendo mais igual a sim mesma e desaparecem as transformações vitais com os seus fitos. Continuam no entanto transformações silandeiras e contínuas que, sem balbordos, marcam apenas a nossa paisagem interior, nom se relacionam tam intimamente com modas, estilos, momentos externos, que perdem peso no conjunto.

Logo dum tempo com esse gume a fender por dentro, houvo algum momento no que foi mirrando essa força. Mudámos de lugar, evidenciárom-se outras preocupações que, possivelmente, estivessem a alimentar no escuro essa mágoa. Hoje podo olhar, sem dores, para esses tempos, para as relíquias.

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O agarimo de novembro

A luz de novembro demorou tudo de alongou este tepo de dias breves. O mês transcorreu cheio de passeios com o assombro de estar a olhar um tempo que nom é real. O sol adquiriu, no seu carácter extraordinário, um jeito de veludo. Desacelera as sombras, indefine algo o mundo e outorga-lhe às cousas todas, (a nós mesmos que caminhamos nom baixo ele, mas quase ao carom de tam inclinado) um agarimo que nos integra. Tal e como os joguetes e as crianças que ficam agochados por junto embaixo do cobertor, conformamos de jeito mais intenso um único mundo nestas datas. É aí que atopam o briom e os cogumelos o seu espaço vital, que se incrementa o manto de folhas a confundir as linhas dos caminhos, que medra ainda mais o que de fogar e de irrealidade tenhem estes tempos.

Começa o mês marcado polos inevitáveis defuntos. Um enterro, conversas sobre os ritos funerários e as últimas vontades. As heranças e os pensamentos no tempo. Cousas que acontecem todas juntas como ráfagas de ametralhadora e deixam-nos sem alento. Ao abeiro dessa sombra, boto umha tarde a jogar com o sobrinho, coma sempre a me repensar a mim mesmo naquela época e o jeito no que me relacionava com o meus próprios joguetes. Surpreende-me a cantidade de cousas que chego a recordar dos três anos. O traumático Bosque de Tlalac, o meu triciclo, a série Dentro do labirinto, Sabadabá ou os três globos. As primeiras experiências na garderia ou lhe pedir colo à minha mae enquanto ela trabalhava. Penso também como se estará ele a se elaborar a sim mesmo nestas experiências. E fico amolado por nom termos podido consturír um grande circuíto para percorrer com os carros.


As ánsias por nos ver de novo cristalizam. Umha fim de semana (de novo balnear) de convivência como havia já bem tempo nos reúne em Cuntis. Comidas, passeios extraordinários a descobrir os tesouros que resistem, sempre ao pé dum rio. Conversas quotidianas que racham um bocado a tendência à queixa que tanto nos monopoliza os escassos tempos juntos ultimamente. E faltam abraços. Caem arredor desgraças, hospitais, contágios, algumha morte, distáncias e maus momentos que nom dou gerido com as amizades.

Nas pausas, aparecem anacos extraordinários para nós. Roteiros. Explorações da Marinha. Improvisações com pouco objectivo. Paramos um sábado de sofá e maratona de filmes confortáveis, empurrados por um catarro. Reduzem-se inopinadamente as visitas familiares e jordem no meio da semana alguns momentos partilhados entre picos de trabalho.

Quiçais polo impacto desses tempos, a certa altura do mês activo-me. Passam umhas semanas em que durmo bem e com as energias anovadas despejo cousas pendentes, caminho a passo rápido, mando mails, arquivo questões, limpo, amanho e resolvo, enfronto-me às cousas pequenas que fora deixando medrar enquanto o outono me mantinha a aboiar. E tudo sem intensidade, a fazer porque há que fazer, sem querer estar noutra cousa. Mesmo assim, olho polo retrovisor o recordatório de nom me exceder, controlo as forças, procuro nom abrir novas frontes e fago por me acomodar nestes movimentos.

Voltam também sensações de há anos, as mesmas arbitrariedades desde umha contorna laboral no que atopara um certo equilíbrio. Levo a questom à açom coletiva, à reclamaçom por escrito, à planificaçom como jeito de nom cair no enfado, na insónia estéril, na neurose que tendem a me espertar estes casos. Desta volta diria que amola menos, que nom me ataca no fundo e que consigo, mas vigilo a minha vulnerabilidade, com o pequeno medo a outra queda.

O mês consolida mudanças e evidência cousas novas. Dalgum jeito, a base de espelhos novos, descobro-me numha outra perspetiva. Deixo de me olhar gordo, sem estar necessariamente mais magro. As mudanças do meu corpo continuam a me ter desconcertado. Os ombreiros, os músculos nos braços, as durezas onde nunca as houvera, som cousas que olho com assombro. Sem acabar de compreender de tudo essa parte de mim, começo a me sentir diferente comigo mesmo e outorgo-lhe menos importáncia ao peso. Ando cumha autoimagem fluída. Deixo de me identificar com a barba e os óculos, e sem me preocupar, nom sei exatamente como é que se supom que som.

Decato-me de que deixei de levar as pantuflas sistematicamente ao revês. Desde há um tempo, sem ter mudado nada no meu comportamento, calço a esquerda no pé esquerdo e a direita no direito. Desaparece assim, de jeito totalmente inconsciente, esse estranho signo de rebeldia, tamén inconsciente que me acompanhava desde a infáncia. Será que nom o preciso, que as cousas acadam o seu lugar e se situam em plena luz. Será que as terapias e o tempo fam o seu trabalho.

De jeito geral, o ruído diminuiu. Nom apenas os acúfenos, mas também esse som de fundo que, de jeito inconsciente consome um lote de energia e me fazia precisar horas de pausa. Como um telefone a procurar rede e descarregar bateria, como um trabalho sempre em marcha que desgasta e dificulta se centrar no que um gostava. Esse malestar cativo que me arrastou a vida por anos vai a menos e deixa-me livre para fazer sem esforço mil e umha cousas pequenas. Nom preciso estar noutro lugar e amanho o lava-louças, frego, prego roupa, arrumo e resolvo.

Abandono o café. Algo que já vinha pensando há um tempo, amolado polo facto de me drogar para render no trabalho e polos efeitos secundários dessa adiçom, concreta-se por mor dumha dieta para comprovar outros efeitos secundários, os da hérnia de hiato. Descobro que podo viver sem ele, que nom há tanta diferença. Acho de menos o subidom que dá a ledícia de primeira hora a matar o mono. Mas acho que ajuda essa nova sensaçom a me atopar mais no sítio, a saber que som mais eu o que vive e menos os efeitos do que consumo. Que é meu o cansaço ou o sono, mas também o jeito de estar esperto e de render. E que nom se leva nada mal (cuidado com o mono dos primeiros dias se o tentades, é intenso).

Do mesmo jeito, ando sem cerveja, sem alho, sem tomate e sem saladas, acho que as cousas que mais acho de menos numha dieta que, polo demais, nom é tam diferente do jeito habitual. Em troques, desaparecem os meus mucos matinais, a gorja anda melhor, nom há gases nem repete a comida, o sistema digestivo sente-se assentado e nom dá apenas sinais. Sem pretender fazer disto plano para um longo praço, vejo que podo viver deste jeito.

Acaba este tempo com as preocupações centradas nas amizades danificadas, a me mover com serenidade por um mundo do que fago parte e que se transforma como eu mesmo.

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O conforto (Relíquias IV)

Livraria de velho. Lugo.

O conforto que achegam as relíquias vem na realidade do ar familiar que lhes outorgamos. Do jeito em como nos levam a momentos e épocas que vivemos ou que percebemos como vividas. O seu poder arraiga no fundo dessa percepçom, no enorme fator imaginário com que configuramos a nossa relaçom com elas.

Fam-nos sonhar a nossa própria vida, obrigam-nos gerar a familiaridade confusa com a que nos ligamos a elas. Mesturam o puro conforto das cousas conhecidas com o poder desse sonho, que é o que achega o extraordinário, que supom o gume com o que nos esgaçam.

A nossa relaçom com elas, com esses elementos alheios que nos tocam no fundo a nos falar do transitório e do que já nom está, ativa partes do cérebro que nom conseguem acordar elementos e paisagens quotidianas que levamos carregando toda a vida e que nos mantenhem em ligaçom real com o passado (paisagens que som rotineiras, gastas, mais parte da realidade atual do que no passado).

Nas relíquias há que criar, consciente ou inconscientemente, essa relaçom com nós mesmos. Exigem estar atentos aos seus tons, procurar-lhes os aspectos que há nelas nas que atopamos ecos de nós mesmos para ver como nos ferem. Levam a selecionar e geram destilados puros de passados, conetam com lugares compostos maiormente de imaginaçom e, polo mesmo, mais evocadores do que qualquer lembrança real.

E velaí a magia, o poder que mantenhem, o enganche que nos geram. Dam-nos a arma para nos magoar a nós mesmos a achar de menos mundos que nom existem e que nunca fórom na realidade, como quem tem saudades de Ithilien.

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A força de Outubro


Outubro foi polo seu rego. Assim como setembro era um lugar aberto e confuso, este mês desenvolveu-se com um caudal poderoso e lento, com o peso exato que lhe corresponde ao tempo, aquele que lhe achegam as transformações relativamente pausadas mas constantes que se dam por toda a parte. As nuvens baixas e os solpores vermelhos. As folhas. As maçás e as uvas. Os cogumelos que aparecem e desaparecem. O frio que nos surpreende um dia, como umha sensaçom velha que retorna logo de meses.

Esse movimento demorado marcou rumos dalgum jeito, limpou fundos, continuou o arraste de limos que levo desenvolvendo neste período. Seguim, por exemplo, na tendência a me barbear, como a querer olhar o tempo a cara descoberta, sem necessidade de agochos. Escrevim sobre as saudades que me definírom e magoárom como umha maldiçom constitutiva de mim mesmo e que agora podo contemplar cumha maior distáncia. Pausei um bocado sem, no entanto, ter a sensaçom de ter parado grandes anacos.

Malia à míngua dos dias, levei-no bem. Certo é que o veraninho aligeirou os rigores apenas temidos já do outono. Fixo-o com um sol que nom foi de achar de menos o verao, mas que veu dotado dum calor próprio deste tempo, no que mesturou os arrecendos correspondentes de terra molhada e a leve podrémia das folhas, dos cogumelos, da sombra, das maçás deitadas na erva e de tudo o que volta ao chao. Cheiros estranhamente vivificados pola luz desses dias, por essas jornadas de pequeno milagre que aconteceu ao nosso arredor.

Noia e as heranças marcárom o mês. Começamos já o dia dous numha jornada desaprazível, chuvas e ventos a acompanhar estranhos encontros familiares logo de anos. Umha convivência inédita marcada polas mortes e polas discordáncias do passado que no entanto, achegou umha certa paz, a sensaçom de ter achegado ao concreto aquelas pantasmas que encarnavam as terras, de ter posto em movimento algo necessário. Essa noite fiquei dormido a olhar a TV. E no dia seguinte veu sol, e voltamos a Noia por ócio. Passear por onda o rio, jantar e sim, de novo, explorar por umha leira perdida que de novo se fixo real, como a descobrir novos antigos mundos e restituír memória à vida, sem dramas e sem dores.

Panorámica da leira recuperada

Tocou no mês também botar por Lugo tempo a comer. Passar a tarde a voar um papaventos. Deixar-se estar um bocado. Tivemos também momentos de passar, por vez primeira em quiçais dous anos, umha fim de semana separados. Voltar ao comboio e olhar pola janela toda a viagem. Fórom tempos com as suas complexidades também. Verbalizárom-se conflitos e descontentos, susceptibilidades e más rachas, houvo inquedanças e problemas vários. Ao tempo, o mês deu também para conversas demoradas e sinceras com as amizades que levavam tempo a aguardar. Houvo o extraordinário dumhas canecas com o Salva, um passeio com os Antelo, a se maravilhar pola quantidade de cogumelos que medrárom à beira dos caminhos num caminho e aginha estavam já a apodrecer.

A intensidade exagerada dos hobbies de Belém, a lhe comer vista e sono, tivo a sua contrapartida nos meus esforços por reviver um velho computador. Botei horas preso dessa sensação de hackear a vida e o mercado, de insistir em que resulta possível salvar o que se deita ao lixo, que vivo como jogar umha scape room, resolver adivinhas, experimentar. Inevitável o paralelismo com o meu pai a reparar neste tempo, também, umha lavadora mercada há 40 anos, ou os seus remendos contínuos aos móveis de há 60.

Dalgum jeito, foi um tempo de tentarmos recuperar certa normalidade social. O inédito de duas fins de semana seguidas por Ponte Vedra permitiu recuperar contactos perdidos há anos, botar tempo demorado com os velhos amigos, tomar ainda mais umha cerveja. O acontecimento de nos juntar e cear e jogar numha casa. O impacto brutal do NEVERMORE de Chévere bateu com a intensidade de ver tanta gente, Anna de novo, e na saída a multidom, os encontros tam acelerados e múltiplos e tam estranhos já na altura.

Outubro foi mês de distensom no esforço do exercício, de o levar com menos intensidade e com um bocado mais de carinho polo corpo, como a sentir que vou fazendo abondo. O difícil das partidas, que dérom momentos memoráveis, quadrou também com um reencontro co meu material roleiro de vai para trinta anos. E verificar como também daquela a cousa era mais ler, pensar histórias, fazer personagens, do que jogar. Umha tarde a passear e a cozinhar com música aparece como um instante de paz imprevisto e até estranho. Apenas algo de ukelele num par de tardes.

Pelejar mais um bocado com Barriga Verde e ao tempo procurar-lhe soluções de futuro, neste processo de lhe tomar a medida à força que nos dá e ao esforço que nos leva resgatar o senhor da cachaporra.

Acabou o mês a procurar um bocado de ar, com a necessidade de explorar e nos mergulhar no outono como a nos integrar com ele. Nos últimos dias, a descoberta das Pontes, os cogumelos, a mistura de lugares arrasados, das ruínas que ficam nas margens das organizações complexas e mais da natureza que resiste lá. Repassar a costa da Marinha, parar no spá, percorrer Viveiro da mao dos Chévere, atopar o asombro em todas as cousas, olhar e morar um bocado por fóra do tempo nosso.

Marcou enfim outubro o seu próprio ritmo, sem deixar ocos nem apurar os dias, a se encher de encontros que aparecem na cadência mesma na que caim as folhas, como a prometer umha outra realidade, mais com vós, à que temos que nos afazer ainda por muito que a queiramos.

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O novo Porto (Relíquias III)

Ja nom é Porto aquela cidade em ruínas que descobri há vinte anos, o templo da saudade que me turrava da alma com o peso brutal do passado em cada recanto.

Poida que seja o mínimo consolo, a esperança de recuperaçom que supom ver todas essas fachadas renovadas, mesmo com tudo o que tenhem e falso e de oco. Segue linda, mas perdeu a sua estranheza, o mistério de como acabara tam abandonada, de onde lhe vinham as cicatrizes tam enormes.

Ou será acaso a minha própria mudança. Na última visita atopo umha cidade composta polas minhas próprias lembranças. Visitas quase anuais, as amizades lá, pesam bem mais do que a própria urbe e a sua ferida. A compreensom adquirida sobre as suas dinámicas. O familiar que tenhem já tantos recunchos, vencelhados à minha vida. A descoberta ao acaso de Lello e Irmão há 20 anos. As Taipas. Os cafés com a Margarida. A visita ao espigom com Heidi e Kim. A rápida paragem num 25 de abril a oubir o “FMI” de José Mário Branco nos Aliados. Os concertos de Caetano, Marisa Monte, Deolinda com tanta gente. As noites nas liteiras do “Duas nações”. Os percursos com a Belém e o Worst Tour que tanto ajudou a dar-lhe sentido à problemática magia do lugar e das suas metamorfoses.

A transformaçom dá-me para senti-la um bocado como própria, já nom com aquela estranheça de monumento a tempos idos.

Era no começo Porto também um paraíso da nossa língua, umha terra libertada, um universo de livros novos, os lugares da mística do 25 de abril, a conexão com a antiga estranheza da minha mãe nos seus contatos clandestinos com o país, a semelhança tingida de contínua surpresa.

Por trás das fachadas desta cidade tam diferente adivinham-se vidas anódinas de turismo, teletrabalho, computadoras e Netflix. Já nom a evocaçom lendária as ruíndas, das casas de negócios ultramarinos, das pousadas de viajantes e as vidas entre negócios pioneiros baixo regimes que punham tudo em gris. Nom há louças antigas e lojas de eletrodomésticos velhos, todas elas até certo ponto familiares, que nos situam em contextos de modas misteriosas, de códigos alternos. A cidade de agora já nom me fai trabalhar constantemente o magim. Velaí o poder que perdeu, essa capa de imaginaçom que exige cada ruína.

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Os meandros de setembro

Na sua habitual imensidade, o mês desenvolveu-se em meandros, a colher direções dispersas e ao tempo a abrange-lo tudo dentro da sua determinaçom por nos trasladar ao outono. Dérom pois os seus dias para todas as cousas, os stresses, os momentos de paz, os céus, os banhos, as explorações, os trabalhos e as descobertas, as despedidas e os encontros misturados como essa imagem na que os reflexos do céu, a água e as cousas semimergulhadas se confundem num mesmo plano de confusom e tesouros.

Arrincar com as férias tirou-lhe a setembro um começo definido. Ainda estivérom lá as descobertas de Ponte da Barca, o banho em Paredes de Coura, o cozido no bar A Montanha, as reviravoltas de Monção, o retorno à Guarda, os biluricos e os pilros. O final da road movie com essa família deixou a sensaçom de que o tempo intenso que botei centrado unicamente na viagem, no seu desfrute e nas suas intendências, limpou de certas sombras o ánimo e achegou reparaçom por vias inesperadas.

Em Ponte Vedra houvo umha chance de se sentir normal, tomar duas cervejas de noite, como se fosse o habitual e mantivéssemos ainda esses costumes. Deu também para encontros rápidos, lotes de gente e de crianças arredor, despedidas, passeios intensos a ligar as citas. Também por fim a sensaçom de parar algo onda os velhos. Gestões telefónicas, tentativas de fazer algo por eles, explorações conjuntas da Insuínha e desses fundos retortos de Ponte Sampaio.

O último banho da temporada caiu no Ulha, desta volta em Berres, a sentir já a friagem húmida das sombras como um anúncio dos tempos que venhem. Apanhar as patacas, cortar o cabelo de novo, explorar Os Grobos e os espaços abandonados da N-VI e um retorno à Láncara que continua sem defraudar acabárom o tempo de férias.

O retorno à quotidianidade sentiu-se em certo jeito como um alívio, pisar de volta terreio firme e recuperar as ferramentas para levar a vida: os jantares habituais, o tempo de leitura nas tardes, a partida de rol, os passeios e os cafés regulares com as amigas. O exercício impulsado polo novo smartwatch e os seus registos ameaçou com reivindicar um maior peso que nom sei onde irá. O ritmo pausado véu com certa alegria, com sensaçom de solidez. Deu para pôr por escrito um feixe de cousas, e até houvo que ir às maçás por surpresa a Merelhe, num novo encontro a afiançar o lugar como algo real e nom apenas simbólico.

Malia a que os signos iam se adiantando, na realidade foi cousa de dias o amarelecer das parras, o incremento exponencial das folhas caídas, a baixada das temperaturas, o crescimento das noites. E já estamos no outono, e nom tem mal. Como para marcar a transiçom, caim enfermo no equinoccio. Quatro dias de malestares passados em maratonas televisivas de conforto. Desenhos animados, documentais sobre joguetes dos anos 80, sopa para o cérebro. Até se erguer, olhar pola janela e comprovar como mudou o mundo nesse tempo.

Arroupados nos cobertores correspondentes, desapareceu esse acordar no meio da noite que me vinha acompanhando todo o verao. Logo de leituras erráticas, recuperei a Proust, a história do Mediterráneo, um romance de ciência ficçom negra. O dias avançam cara a umha velocidade de cruzeiro.

O mês finaliza numha semana ultraintensa de citas médicas, compromisos e similares, com o corpo a se mover na fraqueza da recuperaçom e as tentativas de lhe atopar o ritmo. Nesses últimos dias, a antiga teima de ressuscitar velhos computadores aparece a encher tardes intensas de parafusos e código. No horizonte, o peso da expediçom a Tálhara para avançar nos problemas da herança de Hermínia aparece como o grande desafio. Os dias vam ao seu ritmo. Nom há presa nem arrepentimento polo seu passar.

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Um país em ruínas (Relíquias II)

O famoso sanatório de Cesuras, polo 2005.

Isto é umha especulaçom, mas, será Galiza o território com maior densidade de ruínas do mundo? Incluamos como ruínas aquelas vivendas baleiras que nom tenhem um uso específico ou aguardado. Os edifícios públicos sem conteúdo. Os espaços construídos que nom se empregam para nada (esses milheiros de metros quadrados em entrepisos baleiros!). Será cousa do meu olhar, mas a sensaçom é que o país está inçado de ruínas por toda a parte, e cada umha delas amosa o fracasso dum projeto (vital, político, sistémico).

Parte do meu gosto polas ruínas vem desse jeito no que explicitam as regandijas e os problemas do sistema capitalista no que vivemos. Como evidenciam o fracasso, a exclusom, os espaços mortos que som parte inevitável dele. Problemas que nem administraçom nem iniciativa privada sabem tratar, travados nas suas próprias contradições. E ao tempo, gosto o convite contínuo ao sonho que realizam, a pensar novos usos, ocupações, histórias alternativas que transcendem o ciclo vital que a normalidade é quem de conceber. O seu carácter de espaços em branco e oportunidades de resgate.

As casas tenhem sentido enquanto se habitam, depois passam a ser um símbolo doutra cousa, um elemento estético, um estorbo. Tenho a sensaçom pois de viver num país denso de significados, no que o passo do tempo e o fracasso se deixam sentir de jeito especialmente intenso. Medramos afeitos a observar o acabamento das cousas, estamos familiarizados com a diversa degradaçom dos materiais. (Muito me tem consolado a reflexom de Ergosfera sobre o tema).

Supeito que a acumulaçom do abandono por toda a contorna acaba por gerar um certo pouso vital. A sensaçom de que cómpre termos em conta esse universo de pó e cascalho para qualquer movimento. A ideiade construír umha nova casa sempre poderia ser também um projeto de restauraçom. Um negócio poderia aproveitar esse local que nunca se puxo em marcha. Há quilómetros e quilómetros quadrados de espaço por aproveitar para iniciativas musicais, lúdicas, deportivas, botelhões a cuberto, graffitis, raves, encontros amorosos, armazenagem. Neste país nom podemos morar nem viver como se nom estivessem.

O peso imenso dessas desfeitas condiciona as perspectivas, constata como afinal tudo aquilo que fagamos acabará por ser ruína. Mesmo antes da nossa própria morte. Velai a fascinaçom por ruínas quase imediatas, aquelas que som mais novas do que nós mesmos, que nem chegárom a iniciar a sua funçom: A Cidade da Cultura, as praças de desenho que criam verdim desde o minuto primeiro, as urbanizações construídas e baleiras.

Ham ser as minhas teimas herdadas que me ponhem o foco lá, fago por sentir cada vez menos esse peso, tirar a poeira, sentir menos o apelo desses lugares orfos.

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As relíquias

Há toda umha série de elementos que me turram polo alento, que tenhem bordes afiados e ameaçam com me ferir no fundo. Dentro delas, tenhem a sua ferida particular as cousas que chegamos a ver vivas, que se fam familiares dos anos que nós mesmos passamos. Sinais complexas de que nom há retorno, ativam a minha saudade primigénia e fam-me sentir incómodo mais umha vez com o passo do tempo e o jeito da vida, sempre a transitar.

Som relíquias de tempos passados que achegam quando a essa dor o consolo da supervivência. O simples facto de resistirem aparece como umha ínfima possibilidade vitória, umha conexom com o seu tempo de origem. Nom tudo desaparece engolido pola vorágine. Ainda podemos ficar dalgum jeito. Mas ao tempo, a sua própria existência evidência que som excepções, que nom há salvaçom real, que é umha aparência falsa. Há umha fenda nalgures no meu olhar que me fai perceber o mundo inteiro com essa ruptura.

Ao jeito dos ossos dos santos das igrejas, estes elementos som testemunhos que nos conetam com o inefável, que lhe outorgam realidade. No caso da religiom, com a existência do divino e com os milagres. No meu caso, com o passado inexistente. Amo estes restos de naufrágio com o carinho que se lhe outorga aos bonecos de pelúcia, dos joguetes dos kinder, aquele que se reserva para as cousas indefensas, que em ningum momento podem retrucar e rachar a nossa entrega. Essa sentimentalidade com a que nos sentimos mais humanos, que reservamos para o íntimo e é tam mala de partilhar com outra gente.

O fato de domingo dos velhos da aldeia, tirado sempre dumha loja, semelhante sempre a sim mesmo. A loja na que se mercam esses fatos, quase atemporal. Os bares que apenas abrem o dia da festa. A pessoas maiores a amosar as chagas a pedir às portas do Santuário do Corpinho. As casas nas que deixárom de morar famílias e se transformam em cápsulas de tempo. As residências de férias (como aquela de Minho) que incorporam cada ano algumha novidade e se transformam muito mais a modo que os lugares vividos, quase por estratos (um ano um móvel, outro um eletrodoméstico, umha revista abandonada, um joguete esquecido).

As tendas que nom se sabe como continuam abertas. Os rótulos publicitários dos estabelecimentos das vilas. As galerias comerciais. No caso dos comércios a foto fixa tem sempre os seus guardiões. O dono da relojaria, a responsável da fruita. A inovaçom no interior do local fica restringida às marcas comerciais, que se renovam aos poucos no ronsel da TV e que mesturam os desenhos publicitários mais modernos com as sapatilhas de toda a vida ou as garrafas do álcool que levam décadas no seu lugar. O bar fica com o jeito daquela reforma com o que o dono o melhorou na sua mocidade, a finais dos anos 80. O berro aparente de todos eles é “Resistir até o retiro!”. Depois cai tudo no momento em que muda a geraçom. Reforma ou abandono.

Os carros que em 30 anos nom figérom nem 50.000 quilómetros, da casa à taberna e volta. A maquinária agrícola que resiste tudo. Também as fábricas silentes com espaços e estruturas de utilidade ignota. As aldeias inteiras sem movimento nengum, a se deixar ir na chúvia. Os edifícios de vivendas que algum dia fórom para os ricos e aos que o simples passo dos dias mudárom o status até a miséria. As arquiteturas caducadas.

As malditas/benditas relíquias permanecem sobretudo nas periferias urbanas. Lá onde as ondas expansivas da contínua explosom de modernidade nom dam chegado com força. Até o mobiliário urbano, as farolas, as papeleiras, os parques infantis que nunca se chegárom a usar, tenhem um ar a décadas passadas. Visito por vezes lugares onde tudo é um apelo constante a esse esgaçamento entre consolo e constataçom do passo. Por vezes quase consigo me afazer e nom as contemplar como testemunhas dumha tragédia coletiva e comum à condiçom humana. Estou a superá-lo. De verdade.

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As promessas do verao

E velaqui, acho que o comprendim. Nom era o verao aquilo polo que eu suspirava. Nom tinha nada a ver com o calor e o consolo da vida a abrumar a percepçom por toda a parte. Nada de culpa tinham estes meses de que ficasse preso neles e medisse todos os tempos pola quantidade de estio que neles via, polo que mantinham deste tempo os outonos secos ou polo que achegavam de promessa os primeiros gromos em janeiro.

Nom era o verão, na realidade. Era a plenitude que lhe aponho a certos passados, de jeito inevitável, e que se condensa em particular nas sensações que me achegavam às jornadas de praia com a minha mae de cativo. A descoberta contínua do escalar polas rochas, as tentativas na água, os jogos com a areia e (de jeito extraordinário) os clicks de playmobil a aboiar em poças naturais e em cantís construídos onda a toalha. As tardes longas que olhava desde a porta da tenda com certo assombro pola sua duraçom.

Também houvo mais tarde, é claro, a liberdade nestes meses. Os tempos no rio a cantar a berros, Silvio por exemplo, na companhia dos amigos. Comprovar como se prolongava sempre o caminho além, conquistar para nós aqueles espaços: a praia dos croios, os recunchos para o banho clandestino, tudo com o adubo dos arrecendos e as sensações da água doze que só atopo de volta nestes meses. E ainda os poucos verãos sem trabalho, durante a universidade. Ortigueira, os Dias da Pátria, uns meses longos que aginha virárom naqueles veraos em Compostela nos que cada dia era um concerto, umha atividade, umha aventura depois do trabalho, sem se preocupar polo sono. A urgência viu-se alimentada em anos a seguir polas visitas das amizades exiliadas, constantes desde há tempo de mais, que acentuam ainda mais o extraordinário do tempo, a necessidade de o celebrar.

Forom bons tempos, mas nom por culpa do verao. Foi sempre cousa da companhia, do ánimo, da predispossiçom à maravilha que tinha eu mesmo. E isso deu-lhe forma ao sonho. Algo tenhem a luz e o calor que me fam chamar por aqueles tempos.

I spent the summer wasting
Under a canopy of-
Seven weeks of river walkings
Seven weeks of reading papers
Seven weeks of feeling guilty
Seven weeks of staying up all night

Essa relaçom de estar sempre a achar de menos um verao eterno e impossível levou-me a viver com angúria todos os estios das últimas décadas. A consciência da sua fugacidade obrigava-me a querer apurá-los ao máximo. A pura sensaçom de calor, o sol visto como algo que só acontecesse nestes apenas 90 dias, espertava em mim umha ánsia enorme por aproveitar. Ir à praia, caminhar, jantar juntos, conversar, só semelhavam possíveis nestes momentos, como se no resto do ano nom fossem tam reais, tam intensos, tam alegres. A luz boa era apenas a dos solpores entre junho e setembro, tudo o que pagava a pena ver roldava estas semanas, garantia de maravilha e de descoberta, de acontecimentos extraordinários que davam em memórias que atesourava para botar o inverno.

Houvo anos em que tenho sido quem. Concerto tras acampada tras roteiro tras banho em novos lugares, tras festas e encontros. E quanto esforço por manter o ánimo no topo o tempo tudo, superar os cansaços e as ressacas, sentir suceder-se as emoções sem deixar oco para as processar até que voltavam cruas e a reclamar os seus momentos de digestom nas noites de insónia. Velai, por exemplo, aqueles choros da emoçom impossível de gerir a cantar com os Terra Morena em Covelo, berro por tantas cousas que nom tinham por onde saír. Da outra banda, quantasa vezes a frustraçom das promessas que pensava atopar-lhe ao sol, a impossibilidade de estar com toda a gente, de partilhar os momentos máximos de jeito contínuo.

Cumpriu tocar algum tipo de fundo. Fazer terapia. Soltar cousas. Vir algum verao chuvoso. Assim vou-me decatando de que nom é o verao em sim o que me come por dentro. Nom é ele o peso que fica no fundo dessa goma estirada de mais entre a gorja e o estómago que por vezes sinto quando abre o outono. Nom é a distáncia entre os dias de novembro e os de agosto o que me dói, atrapado num tránsito longo de mais para mim. Na realidade a angústia é a velha conhecida do passado irrecuperável e idealizado em geral, da plenitude que nom foi nunca tal.

Nom tenho claro ainda o que isto significa. Polo momento neste ano estranho estou a atopar rastos do outono por toda a parte já desde julho. Flores de ares primaverais, frescores invernais nas primeiras horas da manhá mesturam-se estações e as sensações que gosto. O mesmo estou a apanhar com mais calma esta temporada, que veu com uns riscos menos marcados polos veraos pretéritos, falta da definiçom que lhe dava a velha ánsia. A pandémia, a chuva que veu marcando o tempo, o costume já dumha vida retirada, a ausência das amizades, levou-me a viver os dias com mais preguiça, sem o peso daquela necessidade de estar a tudo. Abonda com um passeio, aproveitar o sol que se achega, tirar por momentos a máscara e respirar o tempo.

(Agora mesmo -começos de agosto- olho pola janela um círrio fora de tempo em Compostela, quando há dez dias que marchárom todos, como a referendar que nom há tempos absolutos e que o verao nom é algo fechado, que o calor vém na realidade da beira de quem queremos).

Poida que aprendesse mais sobre a pausa. Ou que neste ano em particular tenha falta dela, ajustando o fato do corpo às mudanças que se sucedem por toda a parte, ainda inadvertidas em grande medida, difíceis muitas delas de partilhar nas conversas dos reencontros, que em certa medida tenhem que ser quase forçosamente jubilosas. E nom dá o tempo para se pôr ao dia destas miudezas, quê contar fronte a pandemia, os problemas com os cativos e as enfermidades e os problemas dos velhos, as casas novas, os desencontros laborais.

Quiçais nom chegue a me livrar nunca do mantra, e sempre fique umha imagem do sol e do calor como horizonte desejável, como promessa de plenitude. Mas tampouco há ser já o mesmo. Nom preciso dessa fê. O carinho mantem-se mas sem a possessividade, sem a ánsia vencelhada. A estaçom perde importáncia ante as seguridades crescentes do interior, os abraços que me dou e que me dades sem data nengumha.

There’s always the sun
There’s always the sun
Always, always, always the sun


Nom terei, como dizia o outro, um verao invencível dentro. Há ser outra cousa, apenas a vida a cada momento. Tocar o ukelele. Abrir janelas. Fazer exercício. Sentar no zafu, ficar na respiraçom, sentir as vagas que me percorrem o corpo a me abanear até tirar bágoas. Erguer-me limpo como depois dum trevom. Velai o caminho.

Logo vém a chúvia, como corresponde, a fechar o tempo. E agradeço-lhe o vagar, o ritmo que imprime aos minutos, a maravilha do seu brilho. Nos vindeiros meses poderei lembrar os momentos passados na época, os banhos e as festas e os bicos, as viagens, as amizades. Mas nom acharei de menos esse tempo abstrato que carreguei com a responsabilidade de levar toda a vida nele, sem ter ele culpa nengumha.

É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira

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