Julho apurado

Julho tardou em se fazer real. Mais livre da vorágine de trámites, nom conseguiu de entrada a tensom imprescindível para se constituir verao. Dava pistas, deixava impressões, botava umha ou duas horas nas que semelhava se completar. Afinal chegou a achegar dias alternos dessa combinaçom, sem conseguir ceder o seu carácter de miragem.

No primeiro dia sento sozinho na aira, a olhar o céu limpo e as folhas novas dos carvalhos, a flor que engalana os castinheiros e as amoras em potência que pendem das silveiras. Como a aguardar a ver que me tem a dizer o verao, a brisa vém cheia de arrecendos de 1983. A minha infância, olhada desde agora, quer ser toda verao, fai por negar outros tempos. A estaçom clama por essa plenitude recordada, bota por mim um intenso reclamo para procurar por ela. Nom tem volta de folha, este tempo estará marcado para mim até o final com esse arrecendo de ánsia, esse impulso por sair, a olhada sempre deitada cara ao além.

Do mesmo jeito, o mês contou com vários momentos de similares de aguarda por ver se me vinha o verão. Continuou polas semanas adiante a falta de consciência de estarmos nesse tempo. Pendentes de mil coisas, o verão continua a semelhar algo inconcreto que virá sempre depois, sem promessasas certas. É ao bater com as ervas secas, os campos segados, a fugida dos círrios já na fim do mês, que a evidência confronta a sensaçom e nos deixa nos desconcerto.

Por momentos, semelha que o tempo de pelejar com a casa atuou como rito de passo, e que a acumulaçom de tarefas e de ocupações contínuas, que enchérom as tardes sem deixar ocos e vagar, estivessem a alumear um novo jeito de existência. Como se agora me descobrisse capaz e enfrontasse obrigas e retos com um músculo novo. Quiçais perda a autoimagem de indolência que sempre me perseguiu. Poida que saia de acô transformado, mais apegado ao mundo e às suas responsabilidades, menos necessitado de fantasias. Sei lá.

Por vezes, conforma-se nessa tensom exata umha vida com pouca pausa, carregada dum nervo que nom tira o sono e que reclama ainda mais atividade para soltar. Fago exercícios e passeios, aparece gana de meter nos ocos encontros casuais e conversas improvisadas, como se fosse possível encher espaços da existencia com este tipo de demandas e armar um jeito de estar mais compacto e firme, como umha vida musculada por umha variedade de treinos  diários nessas disciplinas de jardinaria invisível com as que se cultivar a um mesmo.

Pergunto-me também se, como efeito secundário dessa transformaçom longamente larvada (ou acaso do abandono do café), estarei a perder capazidades mentais. A preguiça derivada do cansaço diário retira-me gana de leituras complexas. Apanho o sono aginha logo dumhas poucas páginas à noite. Nom me enfronto a retos intelectuais pendentes. Nom vou além do jeito vago de análise que supom esta escrita, dos comentários improvisados e desenvolvidos de conversas e de críticas televisivas.

Numha tarde enceto um projeto estranho de escrita, com um bocado de ficçom, e asombra-me a singeleza com a que aparecem as cenas e os diálogos, como se alguém mos estivesse a contar. E redescobro o satisfatório desse fazer artesano, como o criar argumentos para os jogos de rol.

O verao aparece na visita a Ons. A olhá-lo desde a ilha decato-me de como o meu verao estivo sempre composto de saudades. A sua intensidade estava conformada na tentativa de atopar de novo a suposta plenitude que acompanhava aqueles meses na infáncia. A continuidade de sol e tempo livre, a cheia de cousas a fazer. Agora o tempo som uns dias compostos de sim mesmos. Maravilho-me na luz do solpor sobre a costa. Sinto o asombro de olhar meio país desde o mar, e as perspetivas em que se percebe o perfil do país. Mas ficam livres estes tempos de andar à procura de nada. Nom vam já dirigidos a aquela procura, contenhem o mesmo potencial de prazer do que outros qualquer.

Aliás, decato-me de que do mesmo jeito que medram as chorimas e outras flores agochadas no fundo do inverno, também está o verão cheio de morte, de cousas que deixam de medrar e passam a aguardar polo seu momento germinal, da erva que seca, das flores que deixam o passo ao grao e aos fruitos, já feitos para o vindeiro ano.

As complexidades dos dias dérom para experiências contínuas. O parar um carro à deriva por Baralha abaixo, o passeio com Salva, as copas no Festigal e a alegria que acompanha a Arca da Noe, as visitas anuais de Eva e de Carmela, os encontros rápidos em Ponte Vedra. Castinheiras, o Pontilhom e a ponte sobre o Lérez, Santa Comba, a intensidade do Titiriberia fecundo em encontros e ideias. Os palcos e a antropologia que me levam de retorno a Santa Luzia dous anos depois da descoberta. Telefone novo, que dá para manter contacto com Luzia, Tino e Merlim virtualizados, Alejandra quase nom. Manuel Maria e o Castromil no teatro, e logo canecas como cousa normal. Apuros no trabalho. As tentativas de se pensar numha nova casa, além do ideal, e a comprovaçom que há pouca ánsia no processo. As múltiplas pegas sem penas na cola.

A visita a Laxe, com o seu helicóptero, a procura de lagoas, as chúvias, as ondas grandes, as partidas, o exercício, acordou umha sucessom de harmónicos, como em todos os intres da vida. Canda às anteriores visitas, marcadas pola primeira com a Belém Ambroa, aparecem esqueletes dum urbanismo velho que lembra à Noia da infancia, ecos das praias de Minho, a desídia/descuido no caminhar propria de todos os lugares de férias, a luz sempre invernal dos supermercados pequenos em Galeras.

Todo o momento conta com os seus harmónicos, por vezes tam intensos que podem se impôr à melodia. Ecos do vivido e do lido, sensações que acordam guiadas por fios mínimos e que às vezes se soltam e que adornam tudo. Nom há nada novo que nom conte também com esse agarimo que lhe sobrepomos de jeito inevitável. E a vida foi muitas vezes fazer barreira, evitar me perder entre todos os sinais simultáneos que achega cada intre da vida, num esforço extra que lhe veu fazendo companhia à existência em geral.

Existe um terreio na escrita e na arte feito da acumulaçom secular desses ecos, um espaço conformado polo tacto mol de pressionar a caneta contra um milheiro de folhas usadas, de atopar por baixo dos carreiros das letras os sucos de palavras prévias deitadas há séculos, ao jeito de congostras enterradas no terreio polos passos antigos, que acompanham mas n determinam os novos percorridos.

Gera-se aí toda umha paisagem táctil que lhe outorga peso a certas criações nas que se fai mais evidente essa densidade. Os movimentos dos títeres, as narrações orais, as tentativas de criar partidas de rol, as imagens de certas paisagens achegam esse mapa. Ao percorré-lo, de jeito inevitável, ergue-se um pó de séculos que se incorpora à criação presente, que lhe achega um jeito de raíz difícil de definir.

Afinal o verao conforma-se apenas de dias a passar, cada um deles com sabores diferentes. A expectativa do sol é quem de esmagar os matizes com facilidade, ao exigir-lhe essa suposta plenitude ao tempo livre desta época elimina opções. Nestes anos estou a ser quem de me deixar ir com o tempo, sem olhar tanto para como venhem os céus e mais para como andam as nuvens, a me concentrar nos chaos que sostenhem cada passo. Nom perdo nada na chuva, há apenas ganho no percurso, só do vivido é que se aprende e nom daquilo que nom acontece, e as alegrias nom tenhem a ver com outra cousa nengumha.

Remata o mês com a chegada a Irlanda e o pensar se o seu encanto é cousa da luz, da abertura de céus destas cidades chas, do peso do século XIX na paisagem e o jeito no que a conservaçom facilita o consolo da resistência. O reencontro é menos emotivo do que aguardava. Dum jeito similar ao que aconteceu com o Porto, Irlanda deixou de ser um acubilho para os sonhos, e compom-se, como tudo ultimamente, mais de sim mesma e menos do que eu lhe aponho. Ainda com certa estranheza, navego com um passo mais firme neste percurso.

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