A paz das relíquias

Vivo umha estranha revoluçom interior. Numha transiçom mol e pouco definida, deixam de doer as relíquias. Cessam de estar abandonadas e faltas de amor, nom tenho já que as salvar. Contemplo-as como a iguais, assento nelas. Eu que tam bem compreendo o seu devir, agarimo-as como a velhas conhecidas, nom lhes tenho pena por serem o que som.

Do mesmo jeito que nom doem tampouco consolam em particular. Apenas nos abraçamos, a nos reconhecer numha familiaridade que nom é feita de desgraça, mas de sabermos que na altura já vivemos tanto elas coma min tempos; outros, que nom melhores.

Amar as ruínas polo que som, e nom polo que simbolizam.

Diria que nesta época sinto que as relíquias e mais eu enfrontamo-nos ao tempo com a mesma atitude de o deixar vir e nos tomar. Transformar-nos de projetos em espaços que colonizam o briom e as bactérias, voltados à luz do sol e ao abraço da chúvia, que afinal é por onde vem a vida realmente.

Que havia ser de nós se resistíssemos essa doada transformaçom, onde ficaríamos no esforço de mantermo-nos exclussivamente naquilo que ditava o plano original. A funçom certa, a pedra espida, os impulsos simples do começo. Onde ficaria a história, os meandros, as voltas que nos levárom em direções melhores e nunca supostas. Onde havia sentar se nom tivessem rachado estas pedras. Que tipo de conto contaria a minha pele sem contaminar.

Havia um resorte, um mecanismo tenso entre a gorja e boca do estômago. Soava discordante ao procurar por defeito os ventos que vinham do passado. Com essa peça figem a minha música de saudades, mesmo sem ser quem de a interpretar. Aquela tensom feita mágoa nutria-se da contradiçom com o presente, respirava-se como a tragédia constante do mundo a esgaçar nessas metades, situado eu como receptor e custódio do terrível e interminável processo.

Agora há mais ligeireza. Atopo-me sem esse peso, e polo tanto também algo desnortado. Caminho um bocado ao jeito astronauta: há pequenos assombros por toda a parte, percebo o mundo coma novo, mas ao tempo menos intenso. Careço daquela gravidade, das referências que achava me constituiam. Quiçais esteja a substituir aqueles fundamentos da personalidade por modos mais simples e flexíveis de ser. A mudança remexe-me também em lembranças que agora entendo diferentes e perdem o gume.

Ignoro onde vou olhar a partir de agora. Como me vai emocionar exatamente o mundo. Fai-se-me a existência um som de cordas lene, no que tudo se mistura sem aquela dor. Desaparece a necessidade urgente de consolo pola vida em sim mesma. E atopo-me sem aquela ánsia polos livros, as BDs, os filmes que me achegavam sentido. Que música hei gostar, fora dessa dualidade entre aqueles sons familiares que me feriam no conhecido e aqueloutros que sobretudo achegavam o consolamento? Que hei ler se a vida deixa de ser umha ferida precisada de luzes que a elevem e a tirem do pecado quotidiano que era a perda do tempo?

Ao jeito do apóstata, repito por familiaridade rituais que agora sinto mais baleiros. Os passeios, as fotografias dos amanheceres, as canções, as imagens que me amarravam àquela perspectiva. A olhada ao mundo prende ainda nos mesmos pontos e paisagens, mas nom atopa lá aquela conexom que doía e confortava. Mantenho na aparência o único jeito de estar que conheço, mas deixo que os dias lhe vaiam polindo as beiras e me gerem outras perspectivas. Enquanto descobro como soam as cordas que agora ficam livres no interior, ainda inseguro, deixo-me transportar, permito-me desfazer coma as ruínas que abraçam a chúvia e o inverno.

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