Março interior

Março transcorreu sem se olhar, os dias seguidos uns por trás dos outros a transcorrer fora do tempo  externo, num caminho marcado polos ritmos da própria vida, que nom das estações. O pano com o que a chúvia nos separa do mundo, o trabalho absorvente fixo mais singela a abstraçom e contribuiu a nos manter neste domínio interior. A travessia desenvolveu-se constante, com a força contida dum motor de barco fixado numha marcha curta a surcar este tránsito que sempre é o mês, que se situa no meio como um equador que compre atravessar.

Céus novos

Há rastos fugazes de primavera nas fendas destes dias. Céus novos, sementes e flores que se desenvolvem quase pola beira do olho e se verificam nos passeios mais breves, nas visitas regulares e mínimas a Bonaval. À explosom inicial segue um certo estancamento, e até decepciona rematar o mês com tantas árvores ainda espidas. Mesmo assim supreendem as mudanças em pontos concretos do tempo, como se nom fossem processos quase contínuos e dum dia para outro se instalasse a nova época. Comprovar a luz que entra pola janela e toca novos pontos das paredes, verificar como a maré da primavera traspassa, cada vez que se olha, as marcas imaginárias que contenhem o dia e a noite nuns limites concebíveis e fixados polo costume da invernada.

Como vistos desde longe, ou através dumha janela, sucedem-se os signos desse tránsito. Desenvolve-se a estranheza dos dias do final do inverno com o tom apocalíptico da guerra distante, o pó do Sara, a greve de transporte, a sucessom de tarefas pontuadas polas breves fugidas. A chuva atua também como um abrigo desde o que contemplar o mundo, e nom o fai polos ecos doutros invernos. A familiaridade que lhe achega a água à paisagem dá-se num nível nom nostálgico, retirada boa parte do peso escuro com o que batia no corpo. As mudanças repentinas do tempo deixam-se sentir nos ossos, o mundo a reclamar a atençom que sempre merece, a insistir na nossa ligaçom com os ritmos da terra, a nos atar a essa materialidade planetária. Como me é habitual, altera-se o sono nas proximidades do troco de hora. Ergo-me absurdamente cedo sem necessidade, mas o corpo nom pede mais, ajeita-se ao que lhe marca este período de transições. E depois da data, vai-se regulando, aparece essa sensaçom de agarimo que é acordar e voltar a durmir.

Toda a densidade com a que passou este tempo veu da gestom de moreas de trabalho. A habitual concentraçom de solicitudes de ajudas para associações que se dá cada ano por esta época tivo-me ocupado, algo agobiado, entretido. Adiei consultas médicas, passeios, encontros com gente. Coincidiu isso com um pico de eólicos, tarefas extras também para a Belém. Fazemos entom as jornadas num certo estado de excepçom que, no entanto, nom dói, nom se vive como umha perda de viver. As tarefas sucedem-se, levam a picos pontuais de agóbio, mas nom chegam a ferir, a afundir, a se fazer de mais. Desenvolvem-se estes procesos num nível mais superficial. Batem mais fondo algumhas outras preocupações: A procura de casa, se imaginar em novas situações e o medo a se trabucar ou deixar perder algumha oportunidade. Ou as situações familiares, gente arredor que precisa apoio, que se vê arrastada por infelicidades velhas. Tiram algo o sono e, no entanto, apenas som momentos. De jeito inevitável, a acumulaçom deixa-se sentir em certos pontos do corpo, o pescoço, a mandíbula, a respiraçom na parte alta do peito.

Houvo algumha excursom. Atopei no caminho umha pedra supostamente furada de jeito natural, como aquelas que lim nalgures que permitem olhar as fadas ao seu través. Apreço-a abondo para a levar um anaco, prová-la, agradecer o momento de magia que supom. Mas, de jeito inédito, nom tenho a necessidade de a carregar.

Começou o mês a cuidar moa, as heranças, os velhos. Acunhei a ideia de que existe umha tradiçom familiar de deixar apodrecer as coisas (casas, relações, lembranças) que resume e evidência muitas cousas complexas. Sucedérom-se os encontros com frequências inusitadas, as conversas presenciais e as múltiplas chamadas e videochamadas. A continuidade de Luzia, mais presente do habitual e sempre a acompanhar e descobrir jeitos inéditos de ver o mundo mais comum, o trabalho, as amizades, os cuidados. A Alejandra, o Heitor e o Xico, Jocas e Sérgio e famílias. Vemo-nos por Ponte Vedra, ainda como a tentarmos definir umha quotidianidade que está no ar, cheias a vidas de mudanças a meio fazer e que nos levarám a nos tratar de jeito diferente, outros temas, outros momentos, outros cansaços e ilusões. A visita de Isa deixou um momento de quase normalidade postpandemica, com esse tomar duas cervejas seguidas em grupo. Também a presença mais contínua do Tino, pouco habitual, marcou a primeira metade do mês. Os encontros sem planificar, os passeios com o Ginzo, derom um tom de redescoberta de aspectos da pessoa além dos cafés rápidos de meia hora, um sabor mais calmo à companha que se mistura com a velha familiaridade. Mais umha vez, a realidade rachou-nos o ritmo, e rematou a temporada a mantermos contacto em distáncias exóticas, a inventar novos jeitos de estar.

Um horizonte de casas

Com todas as cousas, o mês desenvolve-se simplesmente a estar e nom exige consolo. Os breves momentos de descobrir, caminhar, olhar, cheios de tesouros por toda a parte, agradecem-se polo que tenhem de pausa, deixam de ser imprescindíveis para lhe achegar sentido à vida.

A me chamar a atençom sobre as mudanças que se me desenvolvem em níveis pouco conscientes, ao ritmo mesmo da floraçom e da luz, despedimos a cadeira de oficina que me acompanhou desde o liceu, quase trinta anos já. Nom sinto mágoa por ela, nem polo tempo que passou. Ao contrário, num nível superficial, sinto-me estranho pola ausência dessas sensações, penso se fazer algum tipo de cerimónia de despedida, movido apenas pola inércia de guardar os ritos herdados dumha outra vida que resultava ser a minha. Mas nom resulta necessário e deixo-a ir.

That old feeling.

Também recibo umha foto de há vinte anos, casualmente sentado nessa mesma cadeira. É estranho. Olho-me e se acaso acho de menos algo daquele eu é a insolência que acompanhava a idade. Olho-a, totalmente baseada em medos e inseguridades que nom partilho já, e sinto-a como umha falsa seguridade que nem sequer foi nunca minha. Sinto mágoa polas feridas daquele eu decato-me de que na realidade o que falta hoje se acaso é a intensidade daquelas alegrias, a descoberta constante que se acompanhava também de grandes descensos, de inestabilidades, de preocupações por cousas pequenas. Ao abeiro disso repasso aquela “gin-fueled hapinness” de há dez anos, o papel inadvertido e normalizado dum bocado de álcool como recompensa mínima que merecíamos simplesmente por viver. Igual que as minhas danças maniacas para desaparecer no sagrado de cada cançom.

Acaba o mês a atopar no meio das tarefas os primeiros momentos de andar de camisola pola rua, a sensaçom primeira de agradecer artopar umha sombra no caminho, umha destas novas, feita de folhas do trinque que nos vam acompamhar nos vindeiros meses.

Nos ocos que me deixam os vários trabalhos, sinto que ainda estou em transiçom cara a outra identidade. Quanda a essas tarefas, que se sentem como grandes e simultáneas de mais, a cozinha, as compras, as lavadoras, contribuem a manter o movimento dos dias. Umha dinámica que, no entanto, nom se corresponde com umha convalescença, mas com algum jeito de estar doutra banda, mais próximo ao terreio, sem a separação imposta polas próprias neuras, as dores velhas, os automatismos. A densidade da existência é constante e morna, confortável. Ainda com certo assombro apalpo o ar a procurar o jeito no que se vive nesta levidade. Muda a minha relaçom com as relíquias. Deixo de precisar certos consolos e de reclamar compensações polos dias que passam. Pergunto-me quais serám as cousas nas que deixarei de pensar, que associações inéditas fará a cabeça desde estoutra banda. Vivo a explorar a própria vida.

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