As beiras de Outubro

Os dias de outubro sabem cara a onde vam. O mês seguiu o seu próprio curso, independente de qualquer expectativa. No veraninho de Sam Miguel atrasou um outono que logo nos botou enriba de socato, cumha intensidade que nos teria deixado fóra de onda se nom for que o mês foi pola sua banda e nós pola nossa. A ocupações destes tempos restárom passeios e exercício, trougérom acordares cedos, deixárom-me ocos que enchim com pequenas tarefas, incapaz de ficar quedo. Os dias desenvolvérom-se concretos, sem grandes manifestações, com as forças medidas da madurez do ano.

Outubro quixo ser amável, apresentar-se como um setembro demorado no que paga a pena ficar. E amámo-lo de través, com a vida de novo meio posta no futuro, mas alouminhados sem apenas nos decatar polos seus céus e acobilhados na mudança das cores, no país da chuva. De jeito repentino escureceu os serões, meteu umha gana de caminhar a modo para se adaptar á que nom atopamos vagar para satisfazer. E a certa altura já estamos lá, sem traumas, a estrear o aquecimento e pôr os cobertores grossos, desfrutar desses calores interiores. Apanham releváncias os olores quentes, da comida e dos comércios, que persistem no ar polas ruas.

Arrincou o mês com o passeio à beira da maré viva, a encher e difuminar de jeito delicioso as fronteiras precisas entre o sólido e quase líquido, a redesenhar as contornas das beiras e reclamar o peso que tem esse mundo mergulhado sobre a realidade.

Aginha surgiu o projeto da nova casa. Nervos por dúvidas que dificilmente se podem definir. A sensaçom repentina de que é possível chegar a um lugar chave em mao, e ter lá um lote cousas que a dia de hoje semelham luxos que nom somos quem de nos conceder. As varandas, a galeria ampla, espaços mil onde estar e olhar. O jardim. O lugar para se reunir sem limitações. Os andeis para incorporar BDs. A possibilidade de nos transformar a melhor nesse lugar melhor. Mesmo sem levar enriba o reto e a incertidume de ter que modificar, adaptar e salvar, o projeto achega umha incerteza importante. O medo a como se acomodar nessa nova vida, de como levaremos todos os processos intermédios até lá chegar, tiram algo o sono.

A cançom dos primeiros dias da possibilidade é o Anda a estragar-me os planos. A boca aberta ante a velocidade com a que muda umha vida, olhar como vam encaixando peças nos ocos dos sonhos. Segundo se vai concretando o processo, umha das primeiras cousas que penso é em fazer altares de agradecimento no vindeiro fogar. Honrar os mortos da casa e os próprios, as correntes impredecíveis que empurrárom bolas caídas ao acaso que ativárom mecanismos que ninguém planificara e que nos levam cá. Concreto depois emoções e decato-me de como preciso retratos dos mortos próprios que gostava acompanhassem as festas para pôr no comedor. Quando nos ofertam um velho aparador, aginha visualizo a sua nova funçom como cámara das maravilhas, mais um altar de lembranças e descobertas feitas ao longo dos anos: as plumas que atopei, as pedras especiais, as postais que dérom no albo, as miniaturas e os restos dalgum enterro, tudo por fim por junto, a fazer presença de milagres e de emoções que me dérom vida, sempre tudo feito a agradecer.

(Nestes dias a retomar sabores que deixáramos no verao, a ausência de Domingo aparece no gesto de talhar o pao da casa, no sabor dos derradeiros chouriços que afumou, como contentores do tempo aquele do passado outono e de todos os que nos trougérom cá, que chegam como um saúdo desde o além e comemos cumha especial reverência).

Todos os dias passárom com um tempo fora de sim, com a perspetiva do futuro a se introduzir na quotidianeidade, a roubar horas de sono e a nos separar do mais imediato. A certa altura a possibilidade semelha inevitável, como apenas umha sucessom de trámites pendentes, e perde nervosismo. Mas esse despraçamento da atençom deixa-me como a nom pisar enteiramente este terreio, como se nom estivéssemos exatamente cá. A cabeça vai para lá quando se acorda no meio da noite. Sem nada concreto em que pensar, apenas com a dificuldade de ter que encaixar umha vida presente e outra nova. Com gana de se apropriar do lugar, pousar na terra, integrar as duas partes.

Fora dos grandes planos, transcorre umha jornada feliz a olhar passaros pola Arousa, a contemplar de novos as luzes desses terreios traseiros que som as marinhas. Boto boa parte do mês a tentar resolver a incógnita de por quê me chegam de tal jeito os corridos tumbados. Rematámos Ted Lasso, achegamo-nos a Zerocalcare. Produce-se a milagre do encontro com Anna, damos mantido o ritmo com Luzia. Sucedem-se tentativas contínuas com o Jocas, e no final conseguimos quadrar. Albiscamos o Fran, ceamos na dos Quintela, fazemos visita rápida a Ponte Vedra. O mês contivo um serám sozinho, umha fim de semana de pausa na casa, as limpezas e arrumações pendentes, um teatro inesperado, umha caneca com Alejandra, a afiançar a conquista de novos espaços. O jantar de primos, as partidas em Silvarrei, a ceia de sushi inesperada num domingo, O ano tranquilo em Moria e o final da partida da Candelória dous anos depois de a pensar. A visita do Carlos e os Antelo. As carreiras a escapar da chuva desde o Gaiás e por Meixonfrio. A ceia com Eva. Ir ao cinema ver o Corno, com os seus ciclos de colheita transtornados. Atopar a Olalha e cear fora, a redescobrer como está a cidade cheia de gente que também é nossa. Ritmos que prometem se manter, anainar-nos nessas redes de amizades e pequenos encontros contínuos que nom dou crido ainda como algo possível e quotidiano.

O mês avançou desde a novidade dos caminhos batidos pola chuva até a normalidade das enchentes a baixar polas ruas, sempre com esse ponto de surpresa e de satisfaçom por ver como a água reivindica os seus espaços. Dalgum jeito esse se esvair as fronteiras entre a água e a terra que marcou com fitos pontuais este tempo reflectírom também essa sensaçom de andar meio por fóra da vida. Outubro transcorreu, dentro da sua orientaçom clara, na sua corrente exata, a se combinar com esses limites tam difusos que acabam por arrastar e mudar as formas das beiras.

E assim, a olhar sair a lua por lugares surpreendentes e os solpores cada vez um bocado mais frios, passou o mês. Os amanheceres aos que lhes procuro o sol ainda mais ao norte do devido, os arcos da velha contínuos e mais próximos do que nunca, os horizontes afastados conformam umha paisagem que olho consciente de que a vou achar de menos.

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